Frases de Rui (14): o discurso e a prática; a força e o Direito
Os povos hão de ser governados pela força, ou pelo
direito.
Será efusivamente aplaudido
qualquer discurso em que se defenda que as ideias devem prevalecer sobre as
paixões, que as instituições estão acima dos indivíduos que as ocupam e que
nenhuma vontade pode ser mais forte do que a Lei.
Quem ousar colocá-lo em
prática, porém, pode se ver em sérios apuros.
Rui Barbosa foi à tribuna do
Senado, em 03 de julho de 1891, para defender que, por impulso do próprio
Senado, se providenciassem as eleições para preencher a vaga, em especial, do
senador Floriano Peixoto, recém-eleito vice-presidente da República.
A constituição da época – tal
qual a dos Estados Unidos da América - previa que a presidência do Senado cabia
ao vice-presidente da República, de modo que a representação dos estados se
mantivesse sempre equânime.
Embora parecesse claro o
impedimento para se acumularem as funções de vice-presidente e senador, a
situação era nova e havia alguma divergência sobre como se proceder.
Ao defender sua posição,
Barbosa procurou demonstrar que não provinha de qualquer sentimento pessoal em
relação da Floriano, afinal:
“...
as instituições não se fizeram para instrumento dos indivíduos, senão, sim,
estes para instrumento das instituições (...) e o futuro dos interesses
republicanos impõem-nos o dever de uma imparcialidade inflexível na
interpretação das verdades constitucionais, sejam quais forem as suas
consequências, e ainda quando elas vão pesar sobre os que mais perto se acharem
de nós pela religião das ideias, ou pela religião da amizade”.
A questão tornou-se secundária
quando, meses depois, Deodoro da Fonseca renunciou e Floriano tomou posse na
presidência da República.
Além de ignorar a Constituição
– que determinava a realização de novas eleições – Floriano exerceu a
presidência de forma autoritária e enfrentou protestos e revoltas, eventualmente
recorrendo ao Estado de Sítio.
É nesse cenário que se dá, em
18 de abril de 1892, a impetração, perante o Supremo Tribunal Federal, do
histórico habeas corpus em favor dos
perseguidos políticos que se encontravam presos na Laje (Fortaleza da Ilha da Laje,
no Rio de Janeiro) ou desterrados em Cucuí (no estado do Amazonas), que Rui
Barbosa promove por iniciativa própria, mesmo tendo, dentre os pacientes,
alguns de seus adversários políticos.
Sem desmerecer as questões
concretas do caso e os inúmeros argumentos brandidos pelo impetrante, desperta
particular interesse a visão institucional que demonstrava da lei e dos tribunais
naquele que, conforme suas próprias palavras, foi o primeiro teste da
Constituição de 1891.
Entre outras coisas, com a
autoridade de quem se considerava uma espécie de pai daquela constituição, Rui Barbosa
procurou, na sustentação oral, demonstrar ao Supremo Tribunal Federal o papel
do Direito:
“O
espírito jurídico é o caráter geral das grandes nações senhoras de si mesmas
(...) Há entre nós antigas prevenções contra os juristas; mas essas prevenções
caracterizam os povos onde o sentimento jurídico não penetrou no comum dos
indivíduos. O mal está na ausência desse sentimento, ou na sua degeneração. Os
povos hão de ser governados pela força, ou pelo direito (...) Não fosse rara,
como é, entre nós essa qualidade essencial, e o poder não seria tão audaz, e o
povo não seria tão ludibriável. Oxalá fôssemos uma nação de juristas. Mas o que
somos, é uma nação de retóricos”.
E do próprio tribunal:
“Aqui
não podem entrar as paixões, que tumultuam na alma humana: porque este lugar é
o refúgio da justiça”.
Sem se furtar combater o
sofisma das “questões políticas”:
“Vós,
Tribunal Supremo, fostes instituído para guarda dos direitos individuais, especialmente contra os abusos políticos;
porque é pelos abusos políticos que esses direitos costumam perecer (...) a
circunstância de abrigar-se em formas políticas o atentado não o subtrai ao
vosso poder equilibrador, se uma liberdade for ferida, negada, conculcada pelo
governo, se levanta diante de vós, exigindo reparação”.
E expor a falibilidade humana,
fundamento da limitação dos poderes:
“Uma
Constituição sensata não pode contemplar o heroísmo como elemento ordinário no
cálculo dos seus freios e contrapesos. As instituições planejam-se para a
humanidade com suas contingências e as suas fraquezas, contando especialmente
com elas, e tendo particularmente em mira as violências, as mancomunações, as
corruptelas, que possam ameaça-las, ou explorá-las”.
O HC foi denegado. O único
voto favorável veio de quem menos se esperava, o paulista Piza e Almeida,
indicado por influência do Ministro da Justiça de Floriano.
Nos dias seguintes, Barbosa apontou
os desacertos do tribunal, em artigos na imprensa.
Sem esconder a suspeita de que
na decisão dos magistrados houvesse pesado mais o temor da espada de Floriano
do que a lealdade à Constituição, concentrou-se nos argumentos jurídicos,
abundantes e intermináveis argumentos jurídicos.
As críticas, por mais duras
que fossem, convidavam os juízes a enxergar o tamanho da instituição que
ocupavam, atacando-lhes a consciência sem lhes ferir a honra.
Do lado de Floriano, a ameaça
que ficou para a História: “se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez,
necessitarão” (Marco Antonio Villa, “A História das Constituições Brasileiras,
2011).
A Barbosa, no desenrolar dos
fatos, couberam a renúncia ao Senado e o exílio.
De sua oração perante o Supremo
Tribunal Federal naquela ocasião, os trechos acima copiados são apenas fragmentos,
mas suficientes para mostrar como permanecemos estagnados no que diz respeito à
compreensão da Lei, do Direito e suas instituições.
Continuamos um país de
retóricos, do tipo que não leva a sério nem os próprios argumentos, do tipo que
só defende a independência do Judiciário quando a decisão lhe agrada.
Foi preciso mais de século
para que a luta de barbosas, silvas e bastos frutificasse. Procuradores,
ministros, juízes e policiais viram-se à vontade para agir com a mais absoluta
independência, mesmo contra os mais poderosos, mesmo contra as próprias
autoridades que os haviam nomeado.
Mas a liberdade tem dessas
coisas, protege até quem não gosta dela...
Fruto mais vistoso desse
arranjo institucional, a operação Lava Jato acabou por envenenar a árvore da
qual proveio.
Seu maior expoente, Deltan
Dallagnol, resolveu creditar às próprias e autoproclamadas virtudes o sucesso
da operação – levando para o pessoal o que deveria ser impessoal, para o
personalismo o que deveria ser institucional, e para o voluntarismo o que
deveria ocorrer dentro da legalidade.
E assim se aplaudiu de pé o
flagrante desrespeito ao Código de Processo Penal, que é tão lei como são as
outras leis. E vimos um general, à la Floriano, dizer aos ministros do Supremo como
deveriam votar, sem disfarçar a ameaça. E o então Presidente da República prometer
descumprir decisões do ministro Alexandre de Moraes. E manifestantes invadirem,
quebrarem e, literalmente, defecarem naquele que deveria ser o refúgio da
Justiça.
Ou a força, ou o Direito. O Direito
erra, falha, e, não raro, conforma-se com a injustiça. Mas a força erra mais e
falha sempre, é a injustiça em si mesma. A escolha não é difícil.
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