Uma aula inesquecível

Foi numa aula do Professor Luiz Barco que incorporei ao meu vocabulário a palavra “falácia”. Muitos usam como sinônimo de “mentira”, mas, a falácia é na verdade uma enganação lógica, que até pode embutir uma mentira, uma falsa premissa, mas também pode ser formada por enunciados verdadeiros acompanhados de uma conclusão falsa, ou ainda resultar numa conclusão acidentalmente verdadeira, posto que não decorre das premissas formuladas.

Examinemos um silogismo clássico:

 

Todo homem é mortal

Eu sou homem

Logo, eu sou mortal

 

Em cima dessa estrutura, podemos extrair conclusões falsas usando premissas verdadeiras:

 

Todo cavalo é mortal.

Eu sou mortal.

Logo, eu sou cavalo.

 

Todo cavalo é mortal.

Eu não sou cavalo.

Logo, eu não sou mortal.

 

Os argumentos acima são evidentemente falaciosos, decorrentes da distorção do sentido de “todo cavalo é mortal” pela equiparação da qualidade ao objeto, como se fossem sinônimos, ou como se houvesse uma necessária exclusividade nas relações qualidade/objeto, uma espécie de redução da realidade (só uma coisa pode ser “assim”, só outra coisa pode ser “assado”, e assim sucessivamente).

Também pode ocorrer a substituição do que define algo, trocando-se a essência pelo atributo, ao que se deduziria que todo cavalo é homem e vice-versa, igualando coisas que são diferentes pelo simples fato de que têm algo em comum.

Uma maneira mais, digamos, matemática de explicar isso é adotar o critério de grupos, ou conjuntos. Homens e cavalos estão no grupo dos seres mortais. Quando se define o indivíduo pelo grupo, diz-se que todos os cavalos são mortais. Todavia, se tentarmos definir o grupo pelo indivíduo, diremos que todos os mortais são cavalos, o que é absurdo.

Troquemos o cavalo pelo personagem A, de má reputação, e sua posição em um determinado grupo, que pode ser uma etnia, um partido político, uma categoria profissional, entre tantos outros.

 

A é mau e está contido no grupo Z.

B não está contido no grupo Z.

Logo, B é bom.

 

A é mau e está contido no grupo Z.

C está contido no grupo Z.

Logo, C é mau.

 

Nos exemplos acima, tenta-se qualificar uma pessoa pela sua posição em relação a outra. Nota-se que, a depender da conduta de B ou C, as afirmações de que sejam “bom” ou “mau” podem até ser verdadeiras, mas não podem ser tidas como conclusões necessárias das premissas anteriores.

A falácia que busca desqualificar o argumento pela qualidade de quem o profere ou a ele adere é conhecida como argumento ad hominem.

Observe-se que, mesmo saindo da boca de um mentiroso, uma verdade não deixa de ser verdade:

 

A diz que a Terra é redonda.

A é um mentiroso contumaz.

Logo, a Terra é plana.

 

Da mesma forma, não deixa de ser verdade a afirmação que, apesar de decorrer de um raciocínio falho, esteja correta:  

 

A diz que a Terra é plana.

A é um mentiroso contumaz.

Logo, a Terra é redonda.

 

Em todos os casos acima, é fácil enxergar o absurdo dos argumentos, mas, substituam-se os singelos elementos utilizados por termos que dependem de uma conceituação ou percepção mais elaborada, e ficaríamos surpresos com a quantidade de vezes em que formulamos ou somos expostos a falácias dessa natureza.

São argumentos não menos absurdos, mas que seduzem por estar impregnados de valores ideológicos, sentimentais, religiosos, e tantos outros que vão ao encontro daquilo que gostaríamos de ouvir, daquilo que nos deixa em uma posição de conforto ou conflito, conforme seja o nosso desejo.

Da lógica à retórica, autoproclamados formadores de opinião usam e abusam de argumentos falaciosos para “demonstrar” os seus pontos de vista. Políticos idem. Jogam fumaça nas contradições e beneficiam-se de um processo de redução ou supersimplificação da realidade, ao fim do qual tudo vira um dilema: ou isso ou aquilo, ou bem ou mal, ou homem ou cavalo, nada mais, como se tudo se traduzisse em opções binárias.

Relações conceituadas há milênios, como espécie/gênero, causa/efeito, parte/todo, sujeito/objeto, conteúdo/continente e outras que se possam imaginar, são trituradas e se perdem num exercício retórico circular, pleno de arrogância e oco de significado.

Nessa esteira, a necessidade humana de respostas, mesmo quando ainda não existem, abre espaço a uma conhecida ferramenta de manipulação do debate, que é a aproximação textual de frases que não mantém entre si uma conexão lógica (ou até mantém, mas em outro nível), de modo a induzir o receptor a formar uma relação de necessidade ou causalidade nem sempre verdadeira, conferindo aparência lógica a argumentos que são, na verdade, meramente especulativos:

 

A foi assassinado.

A sabia de crimes cometidos por B e estava na iminência de ser preso.

Logo, B se beneficiou da morte de A.

 

Essa é uma conclusão lógica. Todavia, o pensamento pode ser exposto de maneira incompleta, deixando a conclusão para o receptor da mensagem:

 

A foi assassinado.

A sabia de crimes cometidos por B e estava na iminência de ser preso.

Tirem suas próprias conclusões.

 

Com isso, planta-se na cabeça alheia o seguinte argumento, não necessariamente falso ou verdadeiro, mas certamente falacioso:

 

A foi assassinado.

A sabia de crimes cometidos por B e estava na iminência de ser preso.

Logo, B matou A.

 

Muito abstrato? Vejamos como construir uma falácia com elementos reais:

 

Ronnie Lessa é suspeito de matar Marielle

Ronnie Lessa morava no mesmo condomínio que Bolsonaro.

Tirem suas próprias conclusões.

 

No mesmo sentido:

 

Adélio tentou matar Bolsonaro.

Adélio foi filiado ao PSOL.

O PSOL é um partido de esquerda.

Logo, “a esquerda” tentou matar Bolsonaro.

 

Nas mídias sociais essa estratégia é frequentemente utilizada pela aproximação de pessoas ou imagens de forma a induzir associações meramente especulativas ou, muitas vezes, sequer existentes.

E há é claro, as falsas premissas. Enquanto algumas decorrem de falácias antecedentes, outras são simplesmente inventadas, chutadas, exageradas ou distorcidas.

Exemplo dos mais comuns é a generalização. Pega-se uma característica ou atitude de alguém, ou alguns, ainda que sejam muitos, e atribui-se a todo um grupo. “Todo universitário é maconheiro”, “todo policial é violento”, “todo servidor é corrupto”, “todo advogado é malandro”, e por aí vai. Ou então se toma um fato isolado, assumindo, de forma arbitrária, que seja representativo de toda a realidade.

Recentemente, diversos personagens entraram para a política com um tipo de discurso que pode ser resumido no seguinte argumento falacioso baseado tanto na generalização como na exclusividade apontada no sofisma do cavalo:

 

Todo político é mentiroso.

Não sou político.

Logo, não sou mentiroso.

 

Não há conclusão válida que possa ser extraída de falsas premissas, e isso não significa que tal conclusão constitua um enunciado necessariamente falso, mas que será preciso um tanto mais de transpiração para que seja demonstrado, se efetivamente verdadeiro for.

Isso porque estamos no campo da lógica, não da mágica. Fatos são fatos e vice-versa, não dá para compreender o mundo simplesmente na base da dedução.

Os elementos brutos da realidade não são cognoscíveis senão pela experiência. Pegar, examinar, testar. Provar. Contra fatos, não há argumentos.

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