(Im)parcialidade
O Campeonato Brasileiro de Futebol é, realmente, muito brasileiro.
A edição de 2005, vencida pelo
Corinthians, rende polêmicas até hoje, menos pelo elenco milionário do campeão,
montado com recursos de origem duvidosa, e muito pela anulação de dois jogos em
que fora derrotado (nas repetições recuperou quatro pontos) e pelo erro da
arbitragem no importante jogo contra o Internacional, que foi o vice-campeão
com três pontos de desvantagem.
No jogo em questão, pela
antepenúltima rodada do torneio, o meia Tinga, do Inter, invadiu a área
corintiana e foi derrubado pelo goleiro. Além de não marcar o pênalti, o
árbitro ainda advertiu Tinga com cartão amarelo – o segundo, razão pela qual o
time gaúcho ficou sem o pênalti e com um jogador a menos. A partida terminaria
um a um.
Erros de arbitragem acontecem e,
por mais graves que sejam, quase nunca dá para cravar com absoluta certeza que
tenham definido, sozinhos, um jogo, que dirá um campeonato. E uma das regras
que os times aceitam quando entram em campo é que as decisões do árbitro são
definitivas, portanto, salvo raríssimas hipóteses, o máximo que se pode fazer é
lamentar e esperar que não ocorram novamente.
Diferente é a situação que levou
à anulação de onze jogos daquela edição do Brasileiro.
Reportagem da “Veja” revelou,
entre outras coisas, que o árbitro Edilson Pereira de Carvalho era pago por
apostadores para interferir no resultado de partidas que apitava, o que veio a
ser confessado pelo próprio.
Num primeiro momento,
acreditava-se que seriam anuladas apenas as partidas em que Edilson
efetivamente interferira no resultado, ou que ao menos tivesse recebido para
tanto. Mas, como definir isso? Analisando o jogo? Confiando exclusivamente na
confissão de Edilson?
No fim das contas, a Justiça
Desportiva acabou por determinar a anulação de todos os jogos em que atuara
Edilson, inclusive aqueles em que os times a serem supostamente beneficiados
acabaram perdendo, como Santos 4 x 2 Corinthians e Juventude 1 x 4 Figueirense.
Sem entrar no mérito das
justificativas usadas pelo desembargador Luiz Zveiter para anular os jogos, é
difícil imaginar outra solução para o caso.
Isso pode soar estranho quando se
pensa em jogos com resultado incontestável, como a vitória do “Figueira” em
Caxias, ou quando o próprio árbitro afirma, em livro que veio a escrever, que
recebia o dinheiro, mas não fabricava os resultados.
Ocorre que, no futebol, a
parcialidade do árbitro impinge a mácula da dúvida em qualquer resultado, dado
o seu papel relevante na evolução da partida e o grande número de decisões que
vão muito além de “bola dentro x bola fora”.
O árbitro precisa ser imparcial e
quando isso não acontece a partida deve ser mesmo anulada (salvo quando um dos
times estiver em conluio com o juiz, caso em que a perda dos pontos parece mais
adequada).
Nos processos judiciais não é
muito diferente: a parcialidade do julgador é vício de extrema gravidade e
deve conduzir à anulação do julgamento mesmo quando isso contrarie o senso
comum.
Tomemos por exemplo um caso em
que surgem provas da parcialidade do juiz de primeiro grau depois que a
sentença já foi proferida e até confirmada por um tribunal. Não dá para alegar
que não houve prejuízo, pois, além de julgar, o juiz singular conduziu toda a
instrução probatória, que não é repetida no tribunal. Mais do que isso, não dá
para conviver com fatos dessa natureza.
Ainda que exista (aparente)
certeza quanto à inocência ou culpa do réu, quanto à procedência ou não do
pedido, imperiosa é a realização de um novo julgamento, pois, se o árbitro ou o
juiz não é imparcial, não há processo nem jogo, apenas encenação, e essa é a
parte da história mais fácil de entender.
A parte mais difícil é definir e identificar,
em casos concretos, a parcialidade, que irá implicar no cancelamento de uma
partida ou de um julgamento.
Naturalmente, não se pode tachar
de parcial um juiz simplesmente porque decidiu contra um dos lados, ou porque
errou, e nem mesmo porque decidiu de forma contrária ao que decidiriam outros
juízes e entendidos de toda sorte, afinal o Direito e o Futebol estão cheios de
“lances interpretativos”. Tais decisões são perfeitamente criticáveis, mas não são,
necessariamente, fruto da parcialidade do julgador.
Além disso, no aspecto subjetivo,
imaginar o juiz como um ser absolutamente isento em relação às partes é uma utopia.
Não se concebe que um árbitro seja
indiferente à genialidade de um craque, nem que um juiz possa quedar-se inabalado
ante a brutalidade de um assassino, mas espera-se de ambos que sejam capazes de
agir de maneira imparcial na hora de aplicar a regra do jogo.
Por outro lado, do julgador que
atua de forma parcial, é irrelevante conhecer o seu sentimento pessoal.
As muitas regras que buscam
assegurar um julgamento imparcial têm uma dupla função. A primeira delas é
assegurar a Justiça de cada sentença, e a segunda, que, de certo modo, decorre
da primeira, é manter a confiança no sistema judiciário.
No caso do ex-árbitro Edilson,
por exemplo, pouco importa que tenha feito a reserva mental de não interferir
no resultado, qualquer confiança na sua arbitragem esgotou-se tão logo aceitou o
suborno, e o mesmo valeria para um juiz que, tendo absolvido certo réu com base
nos autos e por força de seu livre convencimento, viesse a aceitar vultoso
presente logo após o julgamento.
A parcialidade do julgador pode
ser, em alguns casos, presumida (como na hipótese de vir a julgar um parente, por
exemplo). Em outros, ela é afirmada pelo próprio juiz, que se declara impedido
ou revela seu sentimento pessoal quanto à pessoa ou causa em julgamento. Quando
não resulta de fato incontroverso, deve ser provada, e a prova da parcialidade
dispensa prova do prejuízo, que é presumido.
São numerosas as regras que visam
assegurar a imparcialidade, não apenas nos processos judiciais, mas também nos
administrativos; mesmo entidades privadas recorrem a expedientes dessa ordem,
como no caso da proibição estatutária de que o administrador presida a assembleia
que delibera sobre as contas de sua gestão. Dada a importância desse princípio,
regras dessa natureza não são meras “tecnicalidades”, como, muitas vezes, querem
fazer crer jornalistas e comentaristas do cada vez mais numeroso “noticiário
judicial”.
Aliás, a própria exposição
midiática de juízes e fatos sob sua autoridade é, em alguns países,
disciplinada, com fundamento na preservação da imparcialidade do julgamento.
No futebol, já se viu treinadores,
julgando-se prejudicados por erros de arbitragem atestados pelos comentaristas
dos veículos de imprensa, instruírem seus jogadores a “cavar” faltas e pênalti,
na esperança de que o árbitro, tendo tomado conhecimento dos comentários
feitos, venha a “compensar” o erro anterior. Ocorre que o apitador que assim
procede não faz Justiça, erra duas vezes.
Da mesma forma, em casos
amplamente noticiados pela imprensa, especula-se sobre a capacidade do juiz
manter-se alheio à comoção pública, especialmente quando o magistrado se presta
a tecer comentários públicos sobre os fatos e pessoas que estará a julgar.
Como dito, não se espera que os responsáveis por decidir o destino das demandas judiciais sejam absolutamente despidos de valores e opiniões, mas que sejam capazes de enxergar a linha que separa suas convicções pessoais da convicção fundada e fundamentada nos fatos e na Lei, sob pena de cometer injustiças e abalar a confiança da sociedade no Poder Judiciário, o que não costuma terminar bem.
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