Direito e Justiça

Logo mais, quatro clubes entram em campo para definir os finalistas do Campeonato Paulista de Futebol, carinhosamente apelidado de “Paulistão” - pelos que ganham, porque os demais chamam de ”Paulistinha”...

Usar dois pesos e duas medidas faz parte do folclore futebolístico, do chiste entre torcedores, mas vira coisa séria quando interfere no jogo, ou é levado para além das quatro linhas.

Na sociedade não é diferente: toda vez que se confere tratamento distinto àquilo que é substancialmente igual (ou igual ao que é distinto) sente-se logo o amargor da injustiça.

Ocorre que o sentimento de injustiça pode ser, ele mesmo, injusto. É o que acontece quando a diferença entre os pesos ou as medidas existe na mente de quem se sente injustiçado, mas não corresponde à realidade do fato ou à concretude da norma. Quando esse lapso de compreensão da realidade vai no sentido contrário, vemos pavorosas injustiças celebradas em prosa, verso e tuíte.

A título de exemplo, uma pessoa pode reagir com revolta ao déficit de punição (em relação ao previsto em Lei) e com leniência ao excesso, embora sejam injustiças da mesma natureza, com o agravante de que, no mais das vezes, ainda se pode punir o impune, mas é irreversível a situação do punido em excesso.

Caberia aqui uma imensa digressão sobre os significados de Direito e, principalmente, de Justiça, mas, para simplificar e indicar o sentido usado neste post, socorro-me da futebolística: a Justiça identifica-se com uma ideia abstrata de equilíbrio entre os atos e suas consequências, que, no futebol, como no esporte em geral, se expressa na máxima “que vença o melhor”. E o Direito é a regra do jogo.

Nota-se, portanto, que a noção de Justiça transcende o âmbito do Direito, na medida em que há infinitas condutas e situações que podem ser tidas como melhores ou piores (justas ou injustas) mas que são neutras perante o Direito, porque não estão previstas na regra do jogo.

Assim, um analista esportivo pode dizer que um time foi melhor do que o outro e mereceu vencer por conta dos mais variados critérios, mas, diante da regra, vence o jogo quem faz mais gols e vence o campeonato quem faz mais pontos (ou sai vitorioso do jogo final, se for o caso). Pouco importa quão primorosa foi a jogada se, num dado momento, o atacante recebeu a bola em impedimento e, tendo isso ocorrido, pouco importa se foi por um centímetro ou por um metro. O mesmo vale para aquele jogador que passou o torneio inteiro sem cometer uma falta, mas, no último jogo, agride o adversário: será expulso do mesmo jeito.

Por outro lado, toda conduta regulada pelo Direito está sujeita a uma valoração sob o aspecto da Justiça, e quando essa avaliação é negativa, cabe especular se estamos diante de um erro, um acidente, ou se a própria norma é injusta ou complacente com a injustiça.

Se determinada norma colide com outra, ainda que de natureza diversa, há métodos para resolver essa colisão. No campo do Direito, existem não apenas as regras do jogo, mas regras sobre regras, e autoridades ou instituições encarregadas de sua aplicação, interpretação, criação, extinção e modificação

Mas quando a norma (ou a falta dela) apenas colide com o ideal de Justiça, esbarra-se no fato de que cada homem é livre para ter a sua própria percepção daquilo que é justo.

O Campeonato Brasileiro de 1987 foi disputado sob intensa disputa política e segundo regras tão peculiares que, no fim das contas, terminou com dois times se julgando campeões: o Flamengo por ter vencido a chamada “Copa União” contra os principais times do País, e o Sport por ter vencido a final segundo o regulamento que o Flamengo resolveu não cumprir. O caso chegou até o Supremo Tribunal Federal, prevalecendo a posição do Sport, mas é eterno tema de debate nas mesas redondas (e de bar) Brasil afora.

A encrenca, como tantas outras havidas no futebol brasileiro, escancara tanto os limites de uma visão estritamente dogmática da Justiça (“é justo aquilo que está conforme a Lei”) quanto os problemas que decorrem das decisões particulares de desobediência, seja de norma imposta pelo Estado, seja estabelecida em contratos privados.

Deixando de lado as questões extremas ligadas à ilegitimidade da própria ordem jurídica (ou do contrato), a resposta para ambos é a mesma: se a Lei se afasta da Justiça, mude-se a Lei, dentro da Lei.

Foi o que aconteceu no ano de 2003 quando o Campeonato Brasileiro passou a ser disputado pela fórmula de pontos corridos. No ano anterior, quando o campeonato era composto por uma fase classificatória e outra eliminatória, o Santos, oitavo colocado na primeira fase, enfrentou e eliminou o líder São Paulo, que fizera campanha bastante superior (com treze pontos de vantagem), partindo daí para ser campeão.

Minha visão pessoal (e acredito que a da maioria dos amantes do esporte) é a de que a disputa por pontos corridos permite um resultado mais justo, na medida em que o campeão é aquele foi melhor ao longo de todo o torneio. Isso não significa que o título de 2002 foi injusto ou menos merecido do que os dos anos subsequentes, pois foi obtido conforme a regra do jogo. Afinal, como reza a sabedoria popular, “o combinado não sai caro”.

 



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Pato Amarelo e a História

Resistência Analógica

(Im)parcialidade