Racismo e ações afirmativas
Na semana passada, uma grande empresa do setor varejista anunciou um programa de “trainee” exclusivamente para negros, o que causou enorme barulho.
Não foi uma iniciativa
isolada, mas tornou-se o centro de um debate que, embora não seja novo,
deveríamos fazer mais vezes.
O Brasil é um país racista? Sim,
sem dúvida.
Boa parte das pessoas – de
todas as origens – tem uma certa dificuldade para entender (ou aceitar) o que é
o racismo estrutural. Digo isso com a tranquilidade de quem já esteve lá.
Então vamos colocar as coisas
sob um outro ponto de vista, não sem antes esclarecer que, embora não seja a
única, a questão da população afrodescendente é a mais abrangente, persistente
e evidente.
Uma pessoa que não é negra
pode dizer, com toda sinceridade, que não se sente superior, que não discrimina
o ser humano pela cor da sua pele. Da mesma forma, um cidadão que se identifica
como preto ou pardo pode dizer, com toda sinceridade, que se sente inferiorizado
e discriminado. Por se tratar de uma avaliação subjetiva, ninguém pode dizer
que um dos dois esteja errado.
Portanto, a análise tem que
ser objetiva, e fazendo isso não há como escapar da conclusão de que vivemos em
um país racista.
Acesso à educação, emprego e
renda, mortalidade, violência urbana e policial, os números não deixam dúvida
de que a cor da pele infelizmente faz diferença, e isso não é uma questão
ideológica, acadêmica ou jurídica, mas um dado da realidade.
Pouco importa que exista consenso
teórico de que o ser humano não se divide em raças, se na prática essa divisão
existe, e é preciso reconhecê-la para poder acabar com ela. A igualdade é um
direito a ser perseguido em sua dimensão material e não meramente formal.
Nesse contexto, surgem as
chamadas ações afirmativas, que buscam, no caso do racismo, diminuir
desigualdades pela implementação de medidas de caráter transitório que vão além
de simples comandos proibitivos: procuram amenizar os seus efeitos e assegurar
alguma inclusão social a grupos discriminados.
Ação afirmativa
não é nenhuma jabuticaba, nem novidade. A Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Assembleia das Nações
Unidas em 21 de dezembro de 1965 já previa que:
Artigo1º
...
§4. Não serão consideradas
discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de
assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de
indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para
proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos
humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em
conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais
e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.
Artigo 2º
...
§2. Os Estados Membros
tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico,
cultural e outros, medidas especiais e concretas para assegurar, como convier,
o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos
pertencentes a esses grupos, com o objetivo de garantir-lhes, em condições de
igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais. Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de
manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos raciais, depois
de alcançados os objetivos, em razão dos quais foram tomadas.
O Brasil ratificou e
internalizou a Convenção há mais de meio século, mas a efetiva adoção de políticas
afirmativas é fenômeno bem mais recente, que encontrou ainda mais sustentação jurídica com
a promulgação, em 2010, do Estatuto da Igualdade Racial, lei válida e vigente.
Entretanto, ações afirmativas
das mais variadas têm sido alvo de uma onda reacionária possivelmente
estimulada pela tensão racial que emergiu nos EUA e repercutiu mundo afora.
Obviamente, por mais meritório
que seja, não há programa que esteja imune a crítica.
Mas é importante – até para
que críticas bem fundadas sejam levadas a sério – remover do debate argumentos
desonestos ou simplesmente errados brandidos por homens e mulheres acometidos pelo
pior tipo de cegueira – aquela dos que não querem ver.
Exemplo disso é o postulado de
que toda discriminação é odiosa. Poucas são as coisas que contêm um valor intrínseco
e absoluto, a maioria delas se avalia conforme seu tempo, lugar e conexão com
outras, o famoso contexto.
A depender do contexto, o ato
de atirar em um homem pode ser um crime, o cumprimento de um dever ou um ato de
legítima defesa, e assim também deve ser vista a discriminação que visa reparar
uma discriminação injusta e antecedente.
O homem branco, aqui nascido
ou chegado, desfrutou e ainda desfruta de um privilégio invisível e, no mais
das vezes, involuntário, que nem por isso precisa ficar inconsciente.
Reconhecer isso não é, de modo
algum, desmerecer essas pessoas, muitas dos quais enfrentaram enormes dificuldades
antes de prosperar, mas admitir que dentre tais dificuldades não estava o fato
de descenderem daqueles trazidos para serem escravos, nem o preconceito em
razão da cor da sua pele.
Nesse sentido, é um erro “fulanizar”
a questão, sob pena de voltar àquele viés subjetivo que tanto dificulta a compreensão
do problema. Qualquer radicalismo, de lado a lado, deve ser rechaçado, assim
como o uso de atitudes isoladas como exemplo generalizante quando isso não representa
a atitude da maioria.
Na ADPF 186/DF, o STF assegurou a constitucionalidade das cotas raciais para ingresso em universidade, como expressão do princípio da igualdade, mesmo tendo reconhecido que, sob o aspecto biológico, não existem raças na humanidade. De acordo com o relator, Ministro Ricardo Lewandowski:
“Cumpre
afastar, para os fins dessa discussão, o conceito biológico de raça para
enfrentar a discriminação social baseada nesse critério, porquanto se trata de
um conceito histórico-cultural, artificialmente construído, para justificar a
discriminação ou, até mesmo, a dominação exercida por alguns indivíduos sobre
certos grupos sociais, maliciosamente reputados inferiores”.
Ainda assim há quem insista em usar esse
mesmo princípio e esse mesmo conceito para defender uma igualdade utópica e bastante conveniente para os grupos privilegiados.
Em outras palavras, o país
vive séculos de escravidão, outro século de indiferença e, finalmente, quando a
Constituição de 1988 e seus desdobramentos reforçam as bases para políticas de redução das
desigualdades raciais, tenta-se usar a igualdade formal para embarreirar a igualdade
material.
Se a máxima da igualdade inclui
tratar desigualmente os desiguais, e isso já ocorre sem maiores controvérsias
nos mais variados campos do Direito, por que justo na questão racial haveremos
de empregar essa igualdade chapada que, na verdade, desiguala?
Outro ponto a ser refutado é o
uso de eventual dificuldade metodológica para definir quem se enquadra nos
critérios de proteção para interditar a própria proteção. Soa como dizer que é
muito difícil definir quem deve ter prioridade quando surge um órgão para
transplante, então não se fará transplante algum.
Advogar a ilegalidade a priori de qualquer ação afirmativa é uma atitude temerária.
No campo de programas privados,
como o mencionado logo no início, há maior sustentação jurídica para obrigar
outras empresas a agir de forma semelhante do que para proibir aqueles que quiserem
fazê-lo, principalmente quando pensamos na eficácia horizontal dos direitos
fundamentais.
Apesar disso, parlamentares de
diversas cidades e estados chegaram a defender a criminalização da conduta, mobilizando
a máquina judicial com verdadeiros natimortos jurídicos, em claro desperdício
de dinheiro público.
Guilherme de Souza
Nucci (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 2007) ao comentar a Lei
7.716/1989, que trata da discriminação racial, ressalva a existência das ações
afirmativas, e aponta que o art. 4º da mesma Lei
(negar ou obstar emprego em empresa privada) tem como sujeito passivo “a pessoa
discriminada” (ou seja, pessoa determinada) e, ainda que se sustentasse a
subsunção ao art. 20 da mesma Lei (discriminação ou preconceito, que tem como sujeito passivo
a Sociedade), restaria ausente o dolo, afinal, conforme anota o
mesmo autor, “discriminar é segregar”, e as medidas sob ataque visam o
contrário, ou seja, trazer o negro para ambientes dominados por brancos.
Desprezar ou simplificar a questão do dolo nesse caso implicaria uma espécie de responsabilidade objetiva, e então seria necessário colocar na cadeia centenas
de gestores que, mesmo sem estipular qualquer cláusula explícita, somente
admitiram brancos em seus processos seletivos.
Por fim,
é preciso reconhecer que a política do “deixa estar”, ou a que prega ações de
muito longo prazo, já foi testada por décadas a fio e não funcionou.
A título de curiosidade,
podemos ver como o tema foi abordado pelo então candidato Ulysses Guimarães em
programa eleitoral no ano de 1989 (a partir do minuto 34): https://www.youtube.com/watch?v=MnF_IFIqj7o&t=2515s.
A maioria das políticas afirmativas
hoje existentes é recente demais para se dizer que passaram pelo teste da História,
e certamente haverá pesquisa séria destinada a responder esta pergunta.
Enquanto isso, as pessoas em posição
de poder que tiverem ideias melhores, que as ponham em prática. As que não
tiverem, ajudam se não atrapalharem.
A escravidão não é apenas um episódio longo e triste em nossa História, mas uma das razões do nosso atraso, e eliminar o racismo estrutural,
embora seja essencialmente uma questão de justiça, é tão importante quanto qualquer
outra política de desenvolvimento.
Como afirmou Joaquim Barbosa, um dos pouquíssimos negros a ter assento no STF, “não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condição periférica à condição de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo, no plano doméstico, uma política de exclusão em relação a uma parcela expressiva da sua população” (ADPF 186/DF).
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