Corcel II, lanterna lisa

Era um Corcel II, Branco Nevasca. Chovia.

Não, não chovia. Talvez garoasse. Mas era tarde da noite, isso é certo. Na escuridão da Rodovia Luiz de Queiroz, ainda não duplicada, paramos. O Policial Rodoviário veio até a janela e conversou com meu pai.

Entre luzes fracas e vozes distantes, não dava para entender muita coisa, mas parece que as rodas do caminhão não estavam no chão.  

Pulei para o banco da frente, junto à minha mãe e minha irmã, bebê de colo. Com aquele homem magro, de barba rala, deitado no banco de trás, o Corcel retomou o seu rodar macio.

Entramos em Santa Bárbara D´Oeste e, pergunta daqui, pergunta dali, chegamos à Santa Casa, onde deixamos o desconhecido.

Não me lembro se voltei ao banco de trás, mas não me esqueço que os cacos de vidro reluziam quando passávamos embaixo de algum poste de iluminação.   

Essa é só uma das histórias do primeiro Ford da família, um Corcel II, modelo “L”. De interior despojado, tinha no teto um revestimento branco com bolinhas pretas que remetia a um pijama do meu pai, usado ao longo de anos, cujo tecido foi puindo até desfazer-se. “Lembrança da Lua-de-mel”, dizia.

Outros viriam, sem falar nos Ford dos tios, primos, amigos. O F-75 do Vô José é páreo duro, com sua cabine verde e carroceria de madeira; assim também as F-1000 e seus motores MWM, inconfundíveis no som e no cheiro; mas a imagem daquele Corcel é a primeira que me vem à mente quando ouço que a fabricante norte-americana não vai mais produzir automóveis no Brasil.

Embora não dispusesse da potência dos Maverick e Galaxie, ou do luxo dos Del Rey e Versailles, o Corcel II foi, seguramente, o mais belo Ford já produzido no Brasil, e, a nível mundial, acho que só perde para o Mustang da primeira geração (gosto não se discute).

Era um Corcel II, 1978.

Se saiu da fábrica de São Bernardo do Campo nesse mesmo ano ou no ano anterior, desconheço, mas é certo que estalava de novo quando, entre 1978 e 1980, movimentos grevistas tiraram os operários da letargia e começaram a mexer o caldo das mudanças políticas que viriam nos anos 80.

Vinte anos depois, lá estava eu ouvindo histórias desse período, contadas por um certo senhor barbudo, personagem central naqueles eventos. 

Candidato três vezes derrotado nas eleições presidenciais, o líder petista falava no auditório da FFLCH e nadava de braçada na alma mater de seu principal oponente à época, FHC. 

Compareci na condição de fotógrafo do Jornal do Campus e, sentado no primeiro degrau da escada central do auditório lotado, rapidamente esgotei as 12 poses do filme. Depois disso, só me lembro de flashes: saindo em desespero e cobrindo a máquina com um agasalho para tentar enroscar ou desenroscar alguma coisa.

O filme do Lula queimou.

Ainda consegui outro filme, mas fotometrei errado e não usei flash, as fotos ficaram escuras. Felizmente a Carol Maia, que lá estava como repórter, conseguiu uma imagem do evento com um amigo do DCE e salvou a minha pele.

Poucos anos depois a fotografia analógica já estava ultrapassada e encontrei, numa garagem em Tapiratiba, um Corcel II.

Eu passei inúmeras vezes por aquela rua de paralelepípedos, e ele sempre estava lá, com suas lanternas lisas viradas para mim, até que um dia parei para olhar.

O Corcel 78 é inconfundível, pois somente naquele ano, o primeiro da linha, o carro vinha com as luzes de direção dianteiras (tá bom, pisca-piscas) na cor laranja, e as lanternas traseiras lisas, ao invés das lanternas caneladas que vieram a ser uma de suas marcas registradas.  

Me aproximei do portão, observei os vidros amarelados pelo tempo, os pneus diagonais, borrachas um tanto ressecadas, o chão encardido por baixo. Piscas laranjas, lanternas lisas, frisos e emblemas em ordem. Definitivamente um 78, original, modelo “L”. Em relação ao que fora de meu pai, só mudava o tom do acabamento a cor, que era alguma coisa entre o laranja e o marrom, oficialmente designada “Vermelho Itamaraty metálico”. Outra preciosidade: essa cor só foi usada nos Corcel II e Belina 78, saindo do catálogo no ano seguinte.

Não bati palmas, nem toquei a campainha, fui assuntar. O carro era de uma viúva, que morava sozinha naquela casa, donde raramente saía. “Deve ser lembrança do falecido” e “não tenho onde guardar” foram só desculpas que inventei para mim mesmo: a timidez me impediu de ir lá falar com a dona do Corcel. Anos depois, soube que ela deu o carro de presente para o namorado da neta.  

Ainda bem que a timidez não me impediu de encontrar o amor na mais mineira das cidades paulistas que eu conheço. No mesmo ano em que me desencontrei do Corcel vermelho (laranja, marrom, whatever) a recebi no altar, para onde foi conduzida num reluzente Ford Custom azul, 1951.

É claro que não vou dizer que a Patrícia seja mais atraente do que um XR3 e mais valente do que uma Rural, pois isso seria muita indelicadeza, e quem já deu partida num motor CHT a álcool numa fria manhã paulistana sabe que delicadeza é tudo.

Carros são apenas um punhado de metal e outros materiais, não os comparo com pessoas.

Mas há uma gigantesca comunidade internacionalmente distribuída, que vive de fabricá-los, consertá-los, vendê-los, abastecê-los, lavá-los, roubá-los, segurá-los e recuperá-los. Sobre quatro rodas se cometeram proezas e crimes, amores começaram e muitas, muitas vidas terminaram.  

O Mundo vai mudando e ficando diferente, e às vezes aquele objeto que a gente aprisiona na garagem ou na memória é uma forma de reviver a parte boa de um tempo que não existe mais.

É exagero dizer que não haja solidariedade no Mundo de hoje, mas temos cada vez menos pessoas com vergonha de dizer que só querem continuar acelerando, danem-se os desempregados e desesperançados, danem-se os feridos na beira do caminho.

Mais um motivo para reter na memória as lembranças daquela época em que as rodas de três furos dos Corcéis rasgavam as rodovias assobiando a toda velocidade. No caso, 80 Km/h.                                                                                                                                                            


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