Fatos e opiniões

Você prefere ganhar jogando feio ou perder jogando bonito?

Os amantes do futebol adoram gastar saliva debatendo esse assunto, que geralmente começa ou termina com uma comparação entre as seleções brasileiras de 1982 e de 1994.

Enquanto os mais românticos exaltam a elegância do time de Sócrates, Zico e Falcão, eliminado pela Itália na segunda fase da Copa da Espanha, com uma campanha de 15 gols em cinco jogos, os mais pragmáticos elogiam a eficiência da equipe de Dunga, Bebeto e Romário, campeã nos pênaltis após um 0 x 0 com a mesma Itália, nos Estados Unidos, com uma campanha de 11 gols em oito jogos.

São duas formas diferentes de entrar para a História, e escolher entre uma delas é questão de opinião.

Jogar bonito – que não é exatamente sinônimo de jogar bem – até pode ter a ver com alguns dados objetivos, como posse de bola no ataque, finalizações, gols marcados. Mas, no fim das contas, trata-se de uma avaliação essencialmente subjetiva e, portanto, é também uma questão de opinião.

Quando muita gente compartilha a opinião de que determinado time joga bonito, temos um fato. O fato da opinião. O consenso sobre a beleza de determinados lances, como dribles, jogadas envolventes e finalizações difíceis, muitas vezes nos faz perder de vista a subjetividade dessa avaliação.

Já o título é um fato que independe de qualquer juízo de valor, por assim dizer. Chegou na final e ganhou, é campeão. O mesmo se pode dizer da quantidade de tentos anotados.

Assim, aquele que disser que a seleção do Tetra jogava mais bonito do que a de 1982 poderá ser chamado de excêntrico, esquisito, mas aquele que disser que o técnico campeão do Mundo foi Telê, ou que o time de Parreira foi mais goleador, será chamado é de mentiroso mesmo.

Também estará em falta com a verdade quem disser que essa é uma escolha necessária. Afinal, além de haver inúmeros exemplos de times que vencem jogando um futebol considerado bonito, tal afirmação não se sustenta numa análise lógica.

Defender que o Brasil precisaria de um time menos ofensivo para vencer em 82 não passa de especulação. Que não tinha elenco para jogar diferente em 94 é apenas uma hipótese. Que o jogo pouco importa, os resultados são armados e o rodízio entre os títulos de seleções sul-americanas e europeias de 1966 a 2006 seria a “prova” disso, uma teoria da conspiração apoiada em argumento falacioso.

Por mais que exista - quase sempre existe - uma zona cinzenta, separar fato de opinião é fundamental para não criar uma falsa noção da realidade, e os jornalistas profissionais já descobriram isso há muito tempo.

É uma distinção tão consolidada que tem, inclusive, repercussão jurídica, como consta da minha Tese de Láurea para graduação em Direito, de 2007:

 

Na mesma medida em que são mensagens diferenciadas, notícia e opinião são distintamente protegidas pela liberdade de informação jornalística. Na opinião, o valor a ser protegido são as ideias e existe espaço para conjecturas, intuições e suposições. Já na notícia, a proteção recai sobre a narrativa de fatos, e sua correspondência com os eventos sensíveis é imprescindível. Por tal razão, parte da doutrina divide a liberdade de imprensa em “Direito de Crítica ou de Opinião” e “Direito de Crônica ou de Informação”, cuja diferença mais relevante é o dever da verdade no exercício do segundo.

 

A novidade é que hoje a comunicação em massa está ao alcance de qualquer pessoa que tenha um dispositivo conectado à internet, abrindo espaço a comunicadores que, por falta de preparo ou de escrúpulos, ignoram a existência desse cânone jornalístico.

Quando chamados a responder pelas falsidades que perpetram, os propagadores de “fake news” costumam arguir em seu favor o direito de criticar ou opinar, mas o fazem sem razão, pois esse direito não autoriza o uso sorrateiro de elementos de opinião na narrativa de fatos, nem textos opinativos baseados em fantasias, falsas premissas ou pressupostos que não encontram respaldo na realidade.

Conhecer essa distinção também é importante para os que se consideram meros receptores ou consumidores de informação, seja porque, no conjunto, formam uma poderosa rede de comunicação, trocando mensagens entre si, seja para se proteger do farto material enganoso que todo dia é jogado nos meios de comunicação, em especial a internet.

As questões de fato são solucionadas pelo exame da realidade. Há fatos complexos, obscuros, controversos e desconhecidos, mas jamais haverá o fato escolhido. A realidade, cedo ou tarde, se impõe, independentemente da opinião (desejo, preconceito, idiossincrasia) de quem quer que seja.

Opinião, por outro lado, não se impõe, e cada um deve ser livre para ter a sua.

É bem verdade que a opinião pode ser viciada pela desinformação, mas mesmo pessoas com visão clara e similar dos mesmos fatos podem divergir nas suas opiniões, pois opinar, ao fim e ao cabo, é emitir um juízo que envolve valores, vontades e escolhas, ainda que inconscientes.

Os efeitos e eficácia de remédios e vacinas, por exemplo, são questões de fato. Conceber um modelo ideal de Estado já é uma questão de opinião.

E, na minha opinião, bom mesmo é ganhar jogando bonito.

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