Manda quem pode, obedece quem tem juízo
Em sua coluna de estreia no jornal “El Pais”, no último dia 31, o neurocientista Miguel Nicolelis defendeu, de modo enfático e eloquente, a adoção de um “lockdown” nacional por 30 dias, com medidas rígidas e ainda inéditas no Brasil.
Considerada a postura do
Governo Federal, é improvável que isso aconteça, mas não se descarta uma
ampliação das restrições por parte de prefeitos e governadores.
Ainda que, no mais das vezes,
as medidas restritivas já adotadas por prefeitos e governadores não tenham
chegado ao nível dos “lockdowns” que ocorreram ou ainda ocorrem em outros
países, nota-se forte resistência a elas e, diante do inconformismo ou
desobediência, a última palavra cabe ao Judiciário.
Se na primeira e segunda
instâncias há decisões para todos os gostos, o Supremo Tribunal Federal tende a
prestigiar as medidas restritivas, embora os casos julgados até agora estejam
mais assentados em razões de legitimidade e competência do que no mérito desta
ou daquela medida em particular.
Enquanto isso, a sociedade se
digladia, dividida entre grupos que não querem restrições à sua liberdade e
grupos que não querem restrições à sua liberdade, diferenciados, na verdade,
pelo fato de que uns não as aceitam em hipótese alguma e outros as aceitam
porque as entendem necessárias, ou porque são emanadas de autoridades e, como
diz um velho jargão forense, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Quem está com a razão? Sem a
pretensão de responder peremptoriamente a essa pergunta, me proponho analisar,
de um modo genérico, as duas medidas que parecem causar maior comoção: as
restrições ao comércio e prestação de serviços e as restrições à livre
circulação de pessoas, ambas com o objetivo de aumentar o isolamento social.
O primeiro ponto a se destacar
é que os decretos editados por governadores e prefeitos têm sim uma base legal,
que é a Lei nº 13.979/2020.
Com origem em Projeto de Lei do Executivo, votado e aprovado pelo Congresso,
foi sancionada pelo Presidente da República e teve diversos de seus artigos
analisados pelo Supremo Tribunal Federal, que, quando muito, lhes deu
interpretação conforme à Constituição, sem jamais decretar sua
inconstitucionalidade, senão para impedir que a União suprimisse a competência
de Estados e Municípios.
Dentre as medidas previstas
nessa lei estão a determinação de quarentena, definida como “restrição de
atividades ou separação de pessoas etc..” e a restrição temporária e
excepcional da entrada e saída do País e locomoção interestadual e
intermunicipal, tal qual proposto por Nicolelis.
E o Supremo decidiu, na ADI nº 6341/DF,
que Estados e Municípios não precisam de autorização do Ministério da Saúde
para adotar essas medidas.
Mas será que vale decretar
qualquer restrição? De qualquer atividade? Há de haver limites, e pelo que se
depreende da própria Lei e do acórdão do Supremo naquela ação, há limites de
ordem temporal (toda restrição deve ser limitada no tempo), de ordem material (devem
ser preservadas as atividades verdadeiramente essenciais), e limites ditados
pela coexistência dos direitos, pautados, conforme se verifica em vários dos
votos, pelo princípio da proporcionalidade.
Os princípios da razoabilidade
e da proporcionalidade são usados sem muito critério em nossos tribunais, por
isso vou me socorrer da fórmula sistematizada por Robert Alexy em sua Teoria
dos Direitos Fundamentais, que consiste, resumidamente, de uma análise em três
etapas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Na primeira etapa, deve se
verificar se a medida restritiva cumpre a sua finalidade. Aqui parece não haver
muita dúvida. Que o isolamento social impede a propagação de certas doenças é
algo que a humanidade conhece há algum tempo. Tipo, uns quinhentos anos, como
nos revela a própria etimologia da palavra “quarentena”.
Apesar de, a esta altura da
pandemia, já existir um sem-número de exemplos concretos de “lockdowns” bem sucedidos,
não faltam aventureiros para dizer que medidas do gênero não funcionam. Juízes,
todavia, não podem escolher a “Ciência” que lhes parece mais atraente, devem se
fiar nas autoridades de Saúde Pública e nos escritos chancelados pela Academia.
No julgamento da ADI 6341, várias foram as menções a evidências científicas e
orientações da OMS, por exemplo.
As tentativas de usar trechos
de declarações e entrevistas das autoridades da mesma OMS, tirados de seu
contexto, ou de distorcer fatos e estudos, somente corroboram que as evidências
científicas robustas, inclusive aquelas que já existiam e não eram contestadas
antes de as medidas de restrição serem jogadas no centro do debate político,
vão no sentido de que a redução de circulação, de contato entre as pessoas, é
eficaz para a redução do contágio.
Diferente é a situação de
medidas restritivas que, por incompletas ou mal planejadas, ou ainda por seu
baixíssimo impacto, não passam no teste da adequação, tais como as que acabam
por causar aglomeração nos transportes públicos, as que retiram as pessoas de
um ambiente (escola, escritórios) mas permitem que se aglomerem em outros
(bares, cultos religiosos) ou ainda toques de recolher em horários nos quais a
imensa maioria da população já está espontaneamente recolhida.
Mas não basta a medida ser
adequada, ela deve ser, também, necessária, entendendo-se assim aquela que não
pode ser substituída, com resultados ao menos similares, por outra menos agressiva
aos direitos do cidadão.
Nos locais onde é feita
testagem em massa e o rastreio de contatos, por exemplo, é possível isolar apenas
os potenciais transmissores do vírus, tornando desnecessária a adoção de
medidas mais drásticas. Já onde a transmissão é comunitária e se desconhecem os
focos de infecção, qualquer cidadão se torna um potencial transmissor, até
porque uma das características do SARS-Cov2 é ser transmissível antes mesmo de
o portador começar a apresentar sintomas.
A defesa da livre circulação
de pessoas (e do vírus) para que se atinja a tal imunidade de rebanho não é uma
opção viável. Os pecuaristas brasileiros, líderes mundiais em sanidade animal,
sabem muito bem que ela não existe sem vacinação, ao menos não sem deixar um
rastro irrecuperável de perdas. Ademais, quanto mais o vírus circula maior é a
chance de surgirem mutações capazes de romper a imunidade adquirida.
Também é preciso cuidado com o
argumento da suficiência de recursos médicos, em especial de leitos de UTI. A
prevenção do contato impede que as pessoas fiquem doentes. Já a existência de
leitos de UTI apenas impede que uma parte dos doentes venha a óbito, e muitos
dos que se curam ficam com sequelas. Portanto, não são efeitos equivalentes, e
se os governos sabiam da possibilidade de tamanha demanda por UTIs e os
recursos materiais e humanos que as mantém em funcionamento, há de se
questionar se a ação mais urgente era providenciar esses recursos ou bloquear
essa demanda com medidas não farmacológicas, tais como isolamento e quarentena.
Caso estivéssemos bastante avançados com o programa de vacinação, com alguma boa vontade poder-se-ia argumentar a desnecessidade de um esforço de isolamento se houvesse capacidade do sistema de saúde para absorver a demanda, até que as vacinas comecem a dar resultado. Entretanto, com elevada taxa de transmissão, hospitais sobrecarregados e a vacinação ainda incipiente, bradar apenas por mais UTIs é como pedir mais pano para seguir enxugando gelo.
Diante das condições em que
estamos, convenhamos que só os habitantes de um Reino Muito, Muito Distante
podem se dizer surpresos com a adoção de medidas restritivas mais rígidas, que
passam no teste da necessidade por não serem passíveis de substituição, seja
pela carência de vacinas, seja pelo caráter meramente paliativo das ações que não
se fundamentam na prevenção do contágio.
Por fim, é preciso avaliar cada
medida, tomada em seu aspecto concreto, sob o prisma da proporcionalidade em
sentido estrito, o que equivale a fazer um sopesamento entre os direitos que a
medida visa proteger e aqueles que ela vai restringir, a fim de determinar até
que ponto ela é ou não aceitável.
Essa análise tem,
inevitavelmente, um componente político, e isso não é bom, nem ruim,
simplesmente é assim que é, e não haveria como ser diferente. O importante aqui
é afastar politicagens do tipo “vai me foder e perco a eleição”, mas é uma ilusão
achar que existe, para cada uma das questões abaixo propostas, uma resposta
absolutamente certa, na medida em que ela pode variar conforme varia o peso
dado a este ou aquele direito, a esta ou aquela liberdade.
As restrições sanitárias
baseiam-se no direito fundamental à vida e à saúde, numa dimensão coletiva e
social. Se determinada medida restritiva chegou até à análise da proporcionalidade
em sentido estrito, é porque ela é adequada e necessária à proteção à vida e à
saúde, mas ainda pode entrar em choque com outros direitos, ou até mesmo com
outros aspectos da mesma proteção à vida e à saúde.
Alguns dos direitos atingidos
pelas medidas restritivas tem feição marcadamente individual, tais como a
liberdade de locomoção e o direito de propriedade. Ambos encontram limites,
inclusive um no outro. Ninguém pode alegar o seu direito de ir e vir para entrar
em propriedade alheia. Por outro lado, o proprietário de imóvel encravado pode
exigir de algum de seus vizinhos o direito de passagem forçada, sob pena de
ficar privado de sua liberdade de locomoção e do próprio uso da propriedade.
A meu juízo, as restrições à
circulação de pessoas, ou seja, barreiras sanitárias e toques de recolher, só
podem ser consideradas desproporcionais quando forem absolutas. Sendo relativas,
ou seja, quando impeçam o trânsito de pessoas diante de uma ausência de
justificativa ou de teste negativo para covid, apenas postergam o seu exercício
para quando a atividade pretendida voltar a ser permitida ou quando o indivíduo
estiver recuperado da doença.
Já o direito de propriedade há
muito perdeu sua característica absoluta. Mais do que limitado, é condicionado
pela sua função social. Fica fácil enxergar o uso nocivo da propriedade quando
se empresta ou aluga imóvel rural ou residencial para festas clandestinas.
Por outro lado, quando a
função natural do imóvel seria receber, por exemplo, eventos, o uso da
propriedade fica efetivamente impedido, e o proprietário pode ter a justa expectativa
de uma indenização. Mas indenização com base em que? Na ação do Estado para
combater a pandemia ou na omissão do Estado em combater a pandemia? Sob pena de
entrar num “looping” infinito, é mais fácil sustentar a proporcionalidade da
medida quando acompanhada de medidas mitigatórias, como, por exemplo, a isenção
do IPTU no período em que o imóvel não pôde ser usado.
A função social da propriedade
também é um dos princípios da ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa (CR, art. 170),
cujos valores sociais estão incluídos entre os fundamentos da República.
Com base nesse princípio,
justifica-se a responsabilidade objetiva fundada no risco da atividade, no
conhecido binômio liberdade-responsabilidade. Assim, visto no sentido inverso,
não me parece proporcional dar aos proprietários dos mais diversos estabelecimentos
a liberdade de pleno funcionamento, enquanto recaem exclusivamente sobre o
Estado (ou, de modo indireto, sobre a coletividade) as responsabilidades pelo
contágio ocorrido nesses estabelecimentos.
Ademais, apenas são protegidas
pelo direito de livre-iniciativa as atividades lícitas. Trabalhando no centro
de São Paulo, cansei de ver ambulantes sendo removidos pela Guarda Municipal,
aos gritos de “só quero trabalhar”, diante do sorriso silencioso dos
comerciantes de rua, os mesmos que agora protestam aos gritos de “só quero
trabalhar”...
Não se trata, em absoluto, de
menosprezar o desespero que atinge os proprietários e empregados dos estabelecimentos
comerciais e de prestação de serviço atingidos pelas medidas restritivas.
Trabalho e saúde são direitos
sociais de igual estatura constitucional, mas a premissa de que seria possível continuar
trabalhando normalmente diante da situação em que nos encontramos hoje é, no
mínimo, de duvidosa validade
Se é inquestionável que o
controle da pandemia trará benefício a toda a sociedade, inclusive no aspecto
econômico, não se pode dar de barato que diante de uma onda incontrolável de
contágio os negócios continuariam a ser capazes de gerar emprego e renda pelo
simples fato de serem autorizados a funcionar.
Nesse sentido, parece mais
razoável defender que, no caso de restrições ao comércio e prestação de
serviço, elas sejam proporcionais quando garantam o mínimo de atividade necessária
à viabilidade do negócio, sob pena de serem consideradas uma proibição. E,
sendo proibições, que sejam acompanhadas de medidas de apoio a empresários e
trabalhadores, de modo a permitir sua continuidade no futuro, como já tem sido
feito.
Além disso, fica mais fácil
defender a proporcionalidade dessas restrições e proibições quando o Estado age
para, na medida do possível, distribuir melhor esses sacrifícios, e isso não
tem sido feito. Seriam medidas nesse sentido mover os benefícios fiscais dados
a atividades que não foram afetadas (como a construção civil) para aquelas que
sofreram maior impacto, bem como estender aos servidores mais bem remunerados do
serviço público as possibilidades de redução salarial e suspensão de contrato,
tal qual ocorreu no setor privado.
Uma vez que a imposição
compulsória de tratamento específico ou mesmo da vacinação, não tem, na
prática, ocorrido, no campo da proteção à vida e à saúde chama mais atenção o
fato de que algumas das medidas restritivas criam obstáculos e dificuldades
para os cuidados com o corpo de um modo geral. Nada, porém, que pareça tão
grave quanto o colapso do sistema de saúde, que provoca um excesso de
mortalidade em razão da pandemia e também pela falta de atendimento médico a
doenças e condições tratáveis.
O argumento da sanidade mental
está longe de ser pacífico. Primeiro porque restrições brandas tendem a se
alongar no tempo, o que, em tese, pode ser mais danoso à sanidade mental do que
um “lockdown” rápido e eficaz. Além disso, se a ruína econômica pode levar à
depressão e até ao suicídio, o mesmo vale para a perda de um ente querido. Cada
vez mais surgem relatos de pessoas que se sentem culpadas pela morte de pessoas
próximas por terem-nas contaminado, ainda que involuntariamente, e
profissionais de saúde esgotados física e mentalmente.
De acordo com o Portal da Transparência do Registro Civil,
no período compreendido entre 14 de fevereiro e 15 de março último, 1 a cada 3
mortes no Brasil foi por covid. Os dados referentes ao período de um ano, seja
do ano de 2020, seja contado do primeiro caso, seja contado da primeira morte,
revelam que o excesso de mortalidade, sempre superior a 20%, é completamente
explicado pelas mortes por covid.
Ou seja, não há enfermidade
que, posta na balança, seja mais perigosa do que a covid neste momento.
Mas, e a fome? Sem acesso ao
trabalho, não vai ter gente morrendo de fome? A primeira curiosidade deste
argumento é que os comentaristas e políticos que garantem que “vai morrer mais
gente de fome”, sem qualquer embasamento teórico ou empírico, geralmente são os
mesmos que, no início da pandemia, exigiam precisão matemática nas projeções de
mortes por covid. Só faltava dizerem “se for morrer 100.000 a gente faz alguma
coisa, mas se forem só 99.999, tá suave”.
Um primeiro ponto a ser
considerado é que, se por um lado as pesquisas com medicamentos contra covid
ainda estão longe de obter a tão sonhada “bala de prata”, a cura da fome já foi
encontrada. Um prato de comida, de preferência três vezes ao dia, costuma ter
um resultado bastante satisfatório. Além disso, se compararmos os números
disponíveis no sistema Auditasus com o valor da cesta básica de alimentos divulgado pelo DIEESE,
vemos que o custo médio de uma única diária de UTI no âmbito do SUS é mais do
que suficiente para alimentar uma família durante um mês inteiro.
Ou seja, desde que se protejam
as atividades de produção e comercialização de alimentos, tanto de restrições quanto
de surtos da doença, é mais fácil e barato combater a fome do que combater uma
pandemia descontrolada de covid. Difícil mesmo é ter que lutar em duas frentes,
o que, infelizmente, parece já estar ocorrendo.
É bem verdade que nem só de
alimento vive o ser humano. A dignidade da pessoa humana é também um dos
fundamentos da República e impõe-se como limite a qualquer restrição de direito
que se pretenda impor, sendo, inclusive, mencionada como tal na Lei 13.979.
Mas é um princípio de extrema
abrangência. A falta de dignidade está na limitação das atividades sociais, na carestia
econômica de um modo geral, assim como está na falta de atendimento médico ou
na temida falta de covas e urnas para dar um enterro decente aos que falecem.
A ponderação dos vários
interesses que compõem a dignidade da pessoa humana depende de diversos
fatores. Um deles é a gravidade da pandemia. Quanto mais dramático for o
cenário sanitário, mais pesada fica a balança para o lado das restrições.
Mas esse é um raciocínio perigoso.
Para que esperar a pandemia atingir níveis críticos para adotar medidas que
impeçam o seu agravamento? Qual a vantagem do “ver para crer”, depois de
passado um ano de aprendizado? As perguntas são retóricas, mas, infelizmente, a
tática de ficar dizendo “ainda é cedo” para depois começar a dizer que “agora é
tarde” funcionou muito bem para os negacionistas de plantão.
No mesmo sentido, fica mais
fácil sustentar a defesa das restrições quando o Estado dá meios para que as
pessoas e as empresas sofram menos com os seus efeitos.
O Brasil ainda tem uma das
maiores economias do mundo, mas no Ranking do PIB per capta ocupa situação
intermediária, semelhante à de países como a Turquia e a África do Sul.
Portanto, se parece utópico exigir que o Estado brasileiro sustente grandes
períodos de isolamento, como ocorreu no Reino Unido e na Alemanha, soa um tanto
cínico tratar do assunto com argumentos que só fazem sentido nos países mais
pobres da África e da Ásia.
É lamentável que o Judiciário tenha
que ser chamado para resolver questões reveladoras do egoísmo e desunião que
imperam na Sociedade, de que é exemplo o Município de São José dos Campos, que,
tendo vagas de sobra em suas UTI, ao invés de se oferecer para ajudar
localidades em iminente colapso, entrou na Justiça para se ver livre de certas restrições.
Por mais que as medidas restritivas
sejam desagradáveis, a ferrenha resistência que elas provocam parece ser útil
apenas para prorrogá-las e agravá-las. Enquanto a gente bate cabeça, o vírus
está no comando. E, como diz aquele velho jargão forense: manda quem pode,
obedece quem tem juízo.
EMENDA (11.04.2021): Fui alertado, por um raro e raro leitor, que o provérbio estampado no título não é bem um jargão forense - ainda que seja costumeiramente utilizado para evidenciar a imperatividade das decisões judiciais. Tem mais a ver com o poder hierárquico, presente nas mais diversas organizações, em especial nas Forças Armadas. O que me remete à segunda coluna de Nicolelis. Além disso, após a publicação deste texto o STF julgou o caso dos decretos que proíbem celebrações religiosas, que tem, em alguma medida, relação com os assuntos ora tratados. O acórdão ainda não foi publicado, mas já se sabe que os decretos estaduais ou municipais que estabelecem restrições a celebrações presenciais nas igrejas e templos religiosos foram mantidos, por 9 a 2. O Procurador Geral da República, Augusto Aras, defendeu que as medidas não passam no teste da necessidade, pois seria, segundo ele, possível manter as celebrações com protocolos de segurança, conforme já havia defendido o ministro Nunes Marques, que, junto com Dias Toffoli, ficou vencido. Os demais ministros, respaldados pela opinião técnica do Centro de Contingência do Coronavírus do Estado de São Paulo e diante dos números de casos, óbitos e internações em razão da covid-19, julgaram as medidas adequadas e necessárias para combater a doença. Entenderam que a decisão cabe aos gestores locais, e que não há ofensa desproporcional à liberdade religiosa, direito fundamental de primeira geração que se divide em liberdade de crença e de culto. De acordo com o voto do relator, Gilmar Mendes, não se concebe que a restrição temporária de frequentar eventos religiosos públicos tenha aptidão para coagir ou influenciar os cidadãos, no sentido de seguir essa ou aquela religião, ou seja, as pessoas continuam sendo livres para crer com base exclusivamente na sua própria consciência, o que é a expressão da liberdade de crença. Quanto à liberdade de culto, lembrou o ministro que a própria Constituição garante o seu exercício "na forma da lei", e que houve restrições às reuniões religiosas em diversos lugares do mundo. Utilizando-se amplamente do direito comparado e outros precedentes da Corte, defendeu a proporcionalidade da medida diante das atuais circunstâncias, sempre ressaltando o seu caráter temporário e que somente atinge os cultos celebrados na forma presencial, ou seja, está longe de ser uma restrição absoluta ou mesmo, face à gravidade do momento, excessiva.
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