A mentira da vez
É lamentável que ainda seja necessário desmistificar as suspeitas quanto ao número de vítimas da Covid19 no Brasil.
Apesar de vivermos em luto
constante, seja pelas notícias que chegam pela mídia, seja pelo falecimento de
pessoas próximas, o Presidente da República levantou mais uma vez a hipótese de
“supernotificação”, usando uma tabela similar à que segue:
Esses dados não são falsos,
foram extraídos ontem do Portal da Transparência do Registro Civil.
Mas salta aos olhos que possa existir um aumento tão grande de mortalidade em
anos como 2016 e 2018 sem que nenhum evento extraordinário tenha ocorrido no
País, ou que alguém razoavelmente informado possa crer normal um padrão tão alto de aumento da mortalidade
anual (aplicado retroativamente chegaríamos a zero morte em poucos anos para
trás).
Há de se levantar a
possibilidade de que o Portal da Transparência ainda não esteja completamente
abastecido com os dados dos registros de óbito.
Em pesquisa no Sistema de Recuperação Automática do IBGE (SIDRA), na mesma data, os dados encontrados são bem diferentes:
Como já expliquei aqui, o IBGE é abastecido pelos mesmos dados divulgados no Portal, mas divulga suas estatísticas após submetê-los aos seus critérios metodológicos, o que as torna mais confiáveis do que uma simples consulta a dados abertos.
Infelizmente as estatísticas
de 2020 ainda não foram divulgadas, mas já está claro que uma variação anual na faixa dos 15% está longe ser considerada normal.
Uma comparação entre os números do IBGE e do Portal da Transparência reforça a hipótese de que o portal ainda esteja carente de dados relativos a anos anteriores, e forneça números mais confiáveis a partir de 2018, ano em que foi publicado:
Essa explicação faz ainda mais sentido quando se conhece a realidade dos cartórios e sabe que em algumas unidades da Federação a informatização e centralização dos dados já se encontrava mais avançada quando da criação do portal. Isso fica evidente quando se comparam os números relativos aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro:
Não é razoável supor que de 2017 para 2018 o número de mortes no Estado do Rio de Janeiro tenha praticamente dobrado.
Por tais razões, entendo que o
Portal da Transparência, com relação ao momento presente, traz informações
bastante confiáveis, mas o mesmo não se pode dizer do período anterior a 2018.
Outra afirmação repetida de
tempos em tempos pelos que insistem em negar a gravidade da pandemia é que o
número de mortes por pneumonia em 2020 diminuiu artificialmente porque foram
atribuídas à Covid19.
De fato, no Portal da
Transparência do Registro Civil os casos suspeitos e confirmados de Covid19 são
exibidos em conjunto. Talvez por isso o número de mortes associadas à doença em
2020 (198.363) seja ligeiramente maior do que o divulgado pelos veículos de
imprensa (194.976) e pelo Ministério da Saúde (194.949).
Mas, especulação por especulação, não seria de se estranhar que as medidas de isolamento social, uso de máscaras e higiene das mãos tivessem efeito sobre outras doenças do trato respiratório, reduzindo, por exemplo, as mortes por pneumonia causada por outros microrganismos.
De todo modo, considero
intelectualmente desonesto apontar indício de supernotificação por conta das
mortes por pneumonia e não identificar indício de subnotificação quando se nota
expressivo aumento nas mortes por causa indeterminada, síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e causas
cardiovasculares inespecíficas:
Por fim, outro dado importante é que antes de março de 2020 a Covid19 era uma causa mortis inexistente no Brasil. Portanto, para se ter o real efeito da doença ao longo de um ano inteiro de pandemia, pode ser feita uma comparação entre o período de abril de 2020 a março de 2021 e os mesmos períodos imediatamente antecedentes. O resultado é o seguinte:
Os números falam por si.
O prezado leitor e a prezada leitora
a esta altura podem estar pensando que ao questionar esses números o Presidente
da República não estivesse mentido, mas tenha sido induzido a erro pela
inconsistência dos dados do Portal.
Bem, se foi possível escrever
este texto com uma dúzia de cliques na internet, imagine-se o grau de
esclarecimento e detalhamento que poderia obter aquele que está rodeado de
assessores e tem a seu dispor os técnicos do IBGE e do Ministério da Saúde.
Para acreditar que tal bravata não resulta de descarada mentira, é preciso reconhecer no sujeito uma vergonhosa incompetência.
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