Memória de 1988
Com a cabeça enfiada sob o capô aberto, meu pai ia me explicando o que era e para que servia cada parte do motor CHT que equipava o nosso Ford Escort verde musgo.
Nalgum momento, as explicações
devem ter me parecido um tanto cansativas, pois o abandonei lidando com o motor
e comecei a circular pela garagem, que ficava no térreo do prédio onde
morávamos.
Entre os paralelepípedos,
encontrei uma daquelas pedrinhas de argila expandida que se usava nas
floreiras do edifício. Guiado pela lógica conveniente das crianças de oito
anos, concluí que a dita cuja devia ter caído da floreira do quarto do André,
meu amigo morador do primeiro andar, e que seria meu dever restituí-la ao seu
devido lugar.
E assim, resolutamente lancei
a pequena esfera na direção da floreira do André, mas a danada não atingiu a
altura necessária. Duas, três, quatro tentativas, não sei quantas vezes tentei
até que o tinhoso objeto tomasse uma trajetória inesperada e atingisse a janela
basculante da residência do zelador, que estava aberta. Voltei silenciosamente
para o lado do meu pai.
Não demorou, Seu Osvaldo
apareceu. Acho que era domingo, pois não trajava o uniforme azul. Junto a meu
pai, constataram o vidro trincado e encontraram a pedra em posição
comprometedora. Olharam para o alto tentando desvendar de qual floreira ou
varanda tinha vindo a esfera cadente, sem sucesso.
Calei-me.
Dias depois, chegou lá em casa
um orçamento, para a troca do vidro trincado. Meu pai era subsíndico ou algo
assim, e precisava aprovar.
Estávamos na cozinha e,
enquanto ele olhava os papéis e comentava com minha mãe, eu remoía minha culpa.
Acho que minha expressão me entregou.
- Foi você Paulo?
Confessei.
Meus pais ficaram mais
chateados do que bravos, e arcaram com o conserto, cujo valor para mim parecia
uma pequena fortuna, embora provavelmente não fosse. Mereço um desconto, afinal,
naquela época circulavam notas de até dez mil cruzados...
Falando em época, preciso
dizer que não sei ao certo quando se deu o fato ora relatado, mas, fazendo uma
média entre as possíveis datas, encaixo o episódio no ano de 1988, o ano em que
foi aprovada a nossa atual Constituição.
Tenho muitas lembranças de
ficar sentado no chão da sala enquanto meu pai assistia ao jornal na TV, ora se
regozijando, ora esbravejando com os trabalhos da Constituinte. Tomadas do
plenário, senhores engravatados dando declarações diante de microfones e
gravadores enormes e reluzentes, festa, briga, “centrão”, Ulisses Guimarães
brandindo o texto finalmente promulgado.
Nem de longe eu imaginava quantas vezes teria que ler, reler e treler aquele texto, com as inúmeras modificações que sofreu desde então, nem supunha quanto tempo e saliva gastaria defendendo-o das falsas culpas que lhe atribuem, das pedras que lhe atiram de todos os lados.
Soubesse, tinha passado mais tempo no meu quarto, brincando de
carrinho, a salvo de pedras e longe das vidraças.
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