Ecos de uma eleição passada: o recado do Todo Poderoso

Em 1985, os brasileiros voltaram a eleger, depois de 20 anos, os prefeitos das capitais, naquela que foi a mais democrática eleição da nossa História até então.

A disputa na cidade de São Paulo ganhou dimensão nacional e se afunilou entre dois nomes: o ex-presidente Jânio Quadros e o então senador Fernando Henrique Cardoso.

FHC – que na época ainda não tinha virado sigla – buscava seu primeiro cargo no Executivo, apoiado pelo prefeito Covas, pelo governador Montoro e pelo presidente Sarney (embora esse último não fosse dos melhores cabos eleitorais).

A poucas semanas da eleição, a vitória de Fernando Henrique era dada como certa, mas na reta final Jânio pegou pesado, virou o jogo, e levou a Prefeitura.

Depois da derrota, FHC voltou ao Senado e de lá chegou à Presidência, onde conseguiu renovar seu mandato nas urnas, após a aprovação da emenda da reeleição - para a qual foi acusado de contribuir, de maneira nada republicana, o mesmo Olavo Setúbal que outrora financiara Jânio.

FHC ainda está por aí, mas é certo que a História já lhe reserva um lugar dos mais confortáveis no panteão dos ex-presidentes, assentado num legado de inegável modernização do Estado e da economia brasileira.

Os fatos não deixam dúvida de que a vitória janista em 1985 foi um atraso de vida para os paulistanos e, talvez, para todo o Brasil, pois teve consequências em cascata nas eleições de 1986, 1988 e 1989

Um dos lances finais dessa disputa se deu no último debate, quando a TV Globo transmitiu ao vivo o seguinte diálogo:

 

Boris Casoy (jornalista da Folha de S. Paulo) - A minha pergunta é ao senador Fernando Henrique Cardoso. Senador, o Senhor acredita em Deus?

FHC - Essa pergunta o Senhor disse que não me faria.

Casoy - Eu não disse nada.

FHC - Perdão, foi num almoço, sobre esse mesmo debate.

Casoy – Mas eu não disse se faria ou não faria.

FHC – É uma pergunta típica de quem quer levar uma questão, que é íntima, para o político, uma pergunta típica de alguém que quer simplesmente usar uma armadilha para saber a convicção pessoal do senador Fernando Henrique, que não está em jogo. Devo dizer ao deputado Boris Casoy que esse nosso povo é religioso. Eu respeito a religião do povo e, na medida que respeito a religião do povo, as várias religiões do povo, automaticamente estou abrindo uma chance para a crença em Deus.

 

No dia seguinte, Fernando Henrique tentou reduzir os danos durante o programa eleitoral:  

 

“Recordo pungentemente o dia em que rezamos juntos o rabino Sobel, d. Paulo, d. Angélico, o pastor Wright, na igreja da Sé. Chorávamos todos pedindo a infinita misericórdia de Deus porque matavam na tortura brasileiros, aqui em São Paulo... é a mim que vão chamar de ateu? É a mim, esses mesmos que foram algozes, direta ou indiretamente, de todo um povo? Não”.   

 

Durante a campanha, Fernando Henrique tentou associar Jânio à ditadura, seja por ter lhe dado causa, seja mostrando quem o apoiava. E, nessa toada, seu raciocínio era óbvio: os que o chamavam de ateu e usavam o nome de Deus para promover o janismo, eram os mesmos que haviam sido condescendentes com a tortura e a violência de Estado, inaceitável contradição em qualquer lugar do planeta, mais ainda num país majoritariamente cristão.

Jesus, lembremos, foi vítima de tortura e da violência do estado romano.

O fato é que, crente ou não, FHC, assim como Jânio, ocupou a Presidência e nela foi muito melhor sucedido, sem que seu mandato representasse qualquer prejuízo às práticas religiosas, lição de que devemos separar convicções íntimas da vida pública dos candidatos aos cargos eletivos.

Entretanto, temos agora um candidato à reeleição que de maneira explícita elogia a ditadura, idolatra torturadores e usa o nome de Deus contra seus adversários, em especial Lula, outro ex-presidente que nada fez contra as religiões em seus mandatos e cujo partido foi fundado num colégio católico...

A liberdade religiosa é uma conquista relativamente recente na história da humanidade e há lugares em que até hoje não é respeitada. Todos os países livres a contemplam em suas leis e constituições, e no Brasil não é diferente. Compreende a liberdade de se professar e praticar qualquer religião, assim como de não adotar religião alguma.

Mas essa não é uma questão meramente jurídica.

Para quem é cristão, como é a maioria dos brasileiros, trata-se de um ensinamento bíblico. Jesus denunciou os vendilhões do templo; os que oram nas esquinas para serem vistos; os que honram a Deus em suas palavras, mas o mantém distante de seus corações. Pregou a paz e o perdão, repudiou a violência e a hipocrisia. Com a parábola do bom samaritano, demonstrou que os homens não devem ser julgados por sua condição social, étnica ou religiosa. Falando sobre os impostos, foi eloquente: deem ao Imperador o que é do Imperador, e a Deus o que é de Deus.

César lá, o Pai cá. Estado lá, Igreja cá.  

Eis então o recado do Todo Poderoso aos cristãos, extraído do seu mais autêntico Testamento: me incluam fora dessa!

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