Frases de Rui (10): delação premiada
Cada suspensão arbitrária da ordem constitucional prepara surpresas
ainda mais temerosas contra a existência definitiva das instuições.
No início de 1887, o meio político
brasileiro assistia a uma guerra de narrativas envolvendo incêndios criminosos
em canaviais da cidade Campos dos Goytacazes.
Os escravocratas, ainda no poder, acusavam
o movimento abolicionista pelos crimes. Já os abolicionistas insinuavam que fazendeiros
estariam incendiando as próprias lavouras para criminalizar e atrapalhar a
causa da libertação dos escravos, que a cada dia se fortalecia e ganhava apoio
dentro e fora do Brasil.
Em comício da Confederação
Abolicionista, aos 06 de fevereiro daquele ano, Rui Barbosa usou sua afiada
retórica para colocar em dúvida a versão advogada pelo governo da época, e se
valeu de seus incontestáveis conhecimentos jurídicos para apontar defeitos no
processo supostamente destinado a encontrar e punir os culpados.
“É abominável o crime.
Mas a quem lesa ele? Não aos grandes proprietários, para cuja opulência o
prejuízo seria desprezível migalha (...) para quem é então a perda apreciável?
Para a causa abolicionista (...) aplicai, pois, a esses fatos a antiga regra
jurídica: a quem aproveita? Qui prodest?
E a presunção volta-se contra os nossos antagonistas (...) já é mais sagrado um
campo de lavoura, por ser a riqueza de um escravizador, do que a vida de um
homem, porque luta pela liberdade de seus semelhantes.
Não se trata, pois,
de colher os incendiários. Está decretado que os incendiários serão os
abolicionistas ... os abolicionistas, já indigitados pelos entrelinhistas
oficiais, estão agora formalmente denunciados pela toga que os têm de julgar, o
juiz de direito da comarca, em um ofício publicado ontem. A sentença acha-se
lavrada a priori. Agora o de que se
trata é de juntar depoimentos, remexidos na alfurja das consciências que se
vendem, para dar à infâmia as solenidades da justiça”.
Barbosa dedica especial atenção a um
aviso que o então Ministro da Justiça e presidente do Conselho de Ministros, o
Barão de Cotegipe, fizera publicar no Diário Oficial, recomendando ao
presidente da Província do Rio de Janeiro que enviasse a Campos o seu chefe de
polícia, e o autorizando a gratificar, com a liberdade, os escravos, e em
dinheiro, os homens livres, que concorressem para a tarefa de descobrir e
severamente punir os culpados pelos incêndios.
Critica a maneira como proposta a
delação:
“Não se recebe a
delação como a ponta de um fio condutor: dão-se-lhe as honras de evidência, que
conclui, sentenceia e executa”.
E também o fato de ter sido oferecida
por quem tinha lado na questão, existindo indicações de que os prêmios se destinavam
apenas à compra dos testemunhos que pudessem confirmar a versão já escolhida
por quem conduzia a investigação, no interesse do Governo.
“E que vai fazer por
essa ordem o Chefe de Polícia?
Vai, por conta do
governo, comprar o perjúrio a retalho, ou a granel, isto é, vai fomentar e
cometer crime a que nossas leis cominam nove anos de prisão com trabalho, crime,
portanto, três vezes mais grave, perante as nossas leis, do que o delito
indignamente assacado aos abolicionistas de Campos.
Não é tudo:
exonera-se o promotor da comarca por não oferecer bastante segurança às
pretensões perseguidoras da política escravista. Ainda mais. O código fez da
palavra do homem que depõe uma função sagrada, envolvendo-a no juramento para
que não passasse por ela sequer a tentação de um interesse: e o Ministro da
Justiça põe bando oficial à venda pública de testemunhos, fazendo luzir nos
olhos dos necessitados o mais poderoso dos interesses, para os que tem fome, o
dinheiro que compra o pão; fazendo lampejar aos olhos dos oprimidos o mais
irresistível dos interesses no espírito do escravo, a liberdade...”
Constrói assim o argumento de
que toda consequência jurídica que visse a decorrer daquele aviso ministerial
estaria contaminada pela presunção do suborno, e demonstra o mais importante:
que a oferta de delação feita pelo ministro da justiça contrariava a lei penal
e processual; atirava “no braseiro dos canaviais” a Constituição Imperial.
Demonstra, em profético
parágrafo, o resultado de se colocar o sistema de persecução penal a serviço de
interesses políticos:
“A despeito dos homens,
senhores, os tempos se aproximam. Cada crise destas é prelúdio a uma crise mais
aguda. Cada queda na honra anuncia uma queda ainda mais baixa. Cada fraqueza
pública do governo é o pródromo de um desmoronamento ainda maior. Cada
sacrifício das leis é um aresto criado a favor do desconhecido e uma arma que
se entrega às sombras vindouras. Cada suspensão arbitrária da ordem
constitucional prepara surpresas ainda mais temerosas contra a existência
definitiva das instituições”.
Debaixo da ponte que une a
delação do inconfidente Joaquim Silvério dos Reis, sob as Ordenações Filipinas,
às colaborações premiadas feitas na Operação Lava-Jato, sob a Lei nº 12.850/2013,
passa um oceano inteiro, e por isso recomenda-se algum cuidado para não misturar
as estações.
Uma coisa, porém, é certa:
aqueles que, em nome do Estado e da Justiça, detém o poder de negociar,
especialmente com criminosos, dinheiro e liberdade em troca de informações,
devem agir com extrema responsabilidade, espírito público e imparcialidade
objetiva.
E quanto aos tais incêndios,
tudo indica que eram mesmo atos de sabotagem praticados por escravos rebeldes e
homens livres engajados na causa abolicionista. Seu julgamento coube à
história:
“Os
partidos passam; passam os reis, as dinastias, os impérios. Mas a pátria fica,
e fica a história. A história e a pátria hão de ser gratas ao abolicionismo
brasileiro. Elas não o confundirão com os incendiários; e, se nos arguirem,
será de fraqueza, de indolência, de timidez, maldito vício nacional”.
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