A Justiça Possível
Em post anterior, trouxe a constatação feita por Aristóteles, de que se pode entender por Justiça tanto o cumprimento das leis quanto a conduta do homem que não toma mais do que lhe é devido, o que não deixa de ser uma distinção entre Direito e Justiça.
O filósofo grego também faz outra
enunciação importante, no sentido de que a Justiça ora assume um caráter
distributivo, ora corretivo.
A ideia de Justiça Distributiva tem
uma feição comunitária, e atualmente se identifica em questões como a
repartição, entre os cidadãos, dos ônus tributários, dos benefícios sociais, da
riqueza, da terra.
A Justiça Corretiva visa, grosso
modo, reparar injustiças decorrentes de condutas particulares, o que pode ser relativamente
fácil de estabelecer quando se trata de interesses estritamente patrimoniais,
em que tudo pode ser medido em quantidades de coisas ou dinheiro, mas fica bem
complicado quando outros interesses entram em campo.
Joanesburgo, África do Sul, 2010.
Gana e Uruguai faziam partida memorável, valendo uma vaga nas semifinais da Copa
do Mundo de Futebol. O um a um no tempo normal espelhava o misto de emoções
vivido pelo espectador, afinal, se era difícil não torcer pelo carismático time
de Forlán e companhia, mais difícil ainda era ignorar que os ganeses carregavam
consigo a esperança de um continente.
Eis que, no último minuto da
prorrogação, em bate-rebate na área uruguaia, o atacante Suárez evita, primeiro
com o pé e depois com as mãos, em cima da linha, o gol que asseguraria aos
africanos a classificação à semifinal. Pênalti marcado, Suárez expulso.
Enquanto a TV exibia o lance por
vários ângulos, o espectador refletia sobre a atitude de Suárez e sua punição,
que, pela regra do jogo, não poderia ser outra. Se Gana convertesse a
penalidade, o ato seria apenas mais um lance dramático e a punição um mero
detalhe ante a tristeza da eliminação. Entretanto, o chute vigoroso de Asamoah
Gyan explodiu no travessão e, na subsequente disputa de pênaltis, o Uruguai
veio a se classificar. O ato efetivamente tirou de Gana a vitória na
prorrogação, e a punição tornou-se um mero detalhe ante a alegria da
classificação.
No futebol, como na vida, não dá
para esperar que tudo seja sempre idealmente justo, mesmo quando se façam atuar
as regras próprias da justiça corretiva, porque há limites impostos, em última
análise, pela própria realidade.
Num caso de homicídio, por
exemplo, a justiça perfeita também é a justiça impossível, afinal, não há condenação
capaz de ressuscitar a vítima. Em outros casos, pode haver condenação mesmo
após a reparação plena do interesse lesado, como na hipótese em que o bem
furtado é rapidamente recuperado em perfeito estado e sem qualquer transtorno
para a vítima.
É por isso que a Justiça Corretiva
às vezes faz mais sentido do ponto de vista de sua função social do que das
condutas concretas sobre as quais incide, até porque muitas das situações
criadas por tais condutas são, na verdade, incorrigíveis.
Se pusermos o foco nos casos concretos,
a penalidade máxima do futebol pode parecer insuficiente naqueles casos em que
coloca o infrator numa posição melhor do que aquela que estaria se não tivesse
cometido a infração. Mas quando pomos o foco no jogo e no objetivo geral de coibir
faltas dentro da área, a regra funciona porque, na maior parte das vezes, não é
vantajoso cometer uma falta nessas condições. Aliás, se tomado em seu contexto
geral, o resultado final de Uruguai e Gana em 2010 não foi exatamente injusto.
O mesmo vale para a avaliação das
leis. Uma legislação equilibrada é aquela que consegue limitar as injustiças a
casos extremos ou muito específicos. Por outro lado, uma legislação feita com o
foco em casos extremos ou muito específicos tende a ser desequilibrada e, por
conta disso, permitir muito mais injustiça.
Exemplos não faltam.
Pensando no passado, vem à lembrança
nossa atual Lei do Parcelamento do Solo Urbano, que, quando entrou em vigor, no
ano de 1979, foi chamada de “lei certa na hora errada”. Isso porque nem
empreendedores, nem municípios, estavam preparados para atender suas rigorosas exigências,
o que contribuiu para a proliferação de loteamentos irregulares e clandestinos.
Ao ignorar a realidade existente, a Lei não foi capaz de impedir o caos urbano
que já se vislumbrava nos anos 1970.
Pensando no futuro, o Projeto de
Lei das “Fake News” é o tipo de remédio que pode matar o paciente se o legislador,
pretendendo reduzir a zero a disseminação de mensagens falsas e de ódio, vier a
criar uma lei que dê azo à intolerância, ferindo assim a própria Liberdade de
Expressão e o Direito à Informação que deveria garantir. Por outro lado, se a legislação,
ou a falta dela, vier a assegurar a quem quer que seja uma liberdade absoluta, os
mesmos valores restam aviltados, afinal, se a minha liberdade termina onde
começa a liberdade do meu concidadão, aquele que detém a liberdade absoluta
aniquila a liberdade de todos os demais.
A História nos mostra que boas
leis perduram no tempo, entre outros motivos, porque são feitas com base na
razão, no equilíbrio e na realidade dos fatos, enquanto as leis feitas de
afogadilho, no “calor do momento”, por assim dizer, tendem a ser modificadas ou
simplesmente esquecidas, não sem antes causar alguma confusão. O que me faz lembrar
de um certo Campeonato Brasileiro. Mas essa é outra história...
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