Resistência Analógica
Lá se vão
vinte e dois anos desde que, junto com outros estudantes de Jornalismo, me
debrucei sobre a questão do analógico e do digital.
Era um
trabalho para a disciplina de Teoria da Comunicação e o curto texto que
produzimos não abordava o tema em seu mero aspecto formal ou tecnológico, mas
se voltava à produção e compreensão de significados.
A analogia –
sim – não poderia ser mais óbvia, e fomos buscá-la no relógio.
O relógio
analógico é um sistema referencial. As horas são lidas dentro de um formato
conhecido, estabelecido e limitado. Depois de se familiarizar com o seu
funcionamento, basta bater o olho nos ponteiros para se saber que horas são, quanto
tempo se passou ou falta passar para se encerrar o dia, podendo o mecanismo
adotar os mais variados formatos, desde que sejam mantidas as suas mais básicas
referências.
Já o relógio digital
simplesmente diz que horas são, o que, para quem tem em mente as referências de
tempo, não faz lá tanta diferença, pois opera-se uma imediata remissão. Mas é
preciso reconhecer que o display comporta qualquer coisa, como, por exemplo,
“27 horas e 84 minutos”.
Não se concebe
(ainda) que uma pessoa adulta desconheça o sistema horário, mas vamos lembrar
que estamos usando o relógio apenas para uma analogia a sistemas muito mais
complexos, e enxergam-se os riscos da autorreferência quando se imagina a
situação de uma pessoa que olha o relógio e aceita como verdadeiro qualquer
valor que esteja no display porque para si o horário define-se como aquilo que
estiver marcado no relógio.
Àquela época
não me ocorria, nem por hipótese, que viveríamos dias como estes, em que as
velhas referências – ainda que com seus vícios e lacunas – dividem espaço com
verdadeiros oráculos do absurdo, que vomitam vazios de significado e vão
destruindo qualquer chance de diálogo, de compreensão, de evolução, resultando
num mundo binário em que muitos se acham numa luta do bem contra o mal.
É o que se vê
em perfis, blogs, canais e toda sorte de veículos sectários, inclusive da mídia
tradicional, em que as coisas são o que se diz que são, e vão se reproduzindo
dentro de uma bolha de receptores acríticos que encontram na irracionalidade o
refúgio para a complexidade do mundo e do Homem.
E isso é
terrível. Se no passado ditadores precisaram se dar ao trabalho de queimar
livros, hoje abandona-se o conhecimento por livre e espontânea estupidez,
ignorando todo o aprendizado acumulado ao longo da caminhada que nos trouxe até
aqui.
As
possibilidades trazidas pelos meios digitais derrubaram limites em todas as
direções, para o bem e para o mal, e incumbe a todos que ainda temos
compromisso com aquilo que é ético, lógico, e, por que não, verdadeiro, realçar as
linhas que separam o passado do futuro, no sentido de não fazer as coisas que
já tínhamos combinado não mais fazer, não repetir os erros que prometemos não
mais cometer, e manter vivos e universais os significados que traduzem o
pensamento humano, indispensáveis para que ainda exista diálogo e entendimento
no debate público.
É preciso explorar os novos limites da humanidade rumo ao progresso, não ao regresso. Voltando ao exemplo do relógio, o digital não ameaça a compreensão enquanto se mantiverem conhecidas as referências entre o representado e o real. É preciso resistir.
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