Ética, Moral e Justiça
O esporte mais popular do
planeta já foi usado para explicar o Brasil, o mundo, e é um espelho do
indivíduo e da sociedade humana. Por isso mesmo, e guardadas as devidas
proporções, é muito útil para estimular reflexões sobre um tema milenar: como
deve agir o homem justo?
Em “Ética a Nicômaco”,
Aristóteles já identificava que, apesar de não haver uma noção unívoca de
Justiça, ela sempre apresenta duas faces: é justo o homem que age conforme a
lei, e é justo o homem que não é parcial, no sentido de que não toma mais do
que lhe é devido.
Seja para fazer leis ou basear
certas escolhas, quando lhe é dado escolher, o ser humano pode se socorrer da
razão, da emoção, e muitas vezes embaralha as duas coisas.
Quando essas leis e escolhas dizem
respeito ao comportamento humano, o conjunto delas é representativo da moral
vigente nalgum tempo e lugar, na medida em que a moral é dada pelos valores e
posturas aceitos pela sociedade, influencia e é influenciada pela ação humana.
Certos mandamentos morais alcançam o status de verdadeiras leis não formais,
que são seguidas voluntariamente ou por coerção social.
Já a Ética surge como uma
espécie de ciência da conduta, que busca compreender e responder com razão e
método às questões ligadas ao comportamento humano.
Assim, as leis fundadas em
postulados morais tendem a ter a marca de uma época, de um povo, de um grupo,
enquanto as leis fundadas em postulados éticos tendem à universalidade.
Da mesma forma – e sem
qualquer juízo de valor - as escolhas pautadas pela Ética costumam ser mais
racionais, enquanto as escolhas morais são mais suscetíveis à interferência das
paixões.
Dito isso, é bom deixar claro
que a Ética e a moral, em abstrato, não se opõem nem se confundem, já que suas
naturezas são diferentes, embora possam ser limitantes uma da outra.
As respostas que dão a
questões do comportamento humano podem variar da perfeita coincidência à
absoluta divergência, com o agravante de que, ainda que possa ser dividida em
campos ou correntes, a Ética se baseia em fundamentos teóricos minimamente
coerentes e sistematizados, enquanto a moral, por ser um dado da realidade,
será tão heterogênea e fragmentada quanto o contexto social da qual seja
extraída.
O futebol também tem os seus
códigos morais: jogo acabando, time ganhando, um atacante resolve fazer uma
jogada de efeito e toma uma entrada dura de um atleta adversário. Não raro, embora
quem tenha descumprido a regra formal tenha sido o agressor, o autor da “graça”
acaba sendo repreendido por jogadores dos dois times, às vezes até pelo
árbitro, pelos técnicos, por comentaristas. A torcida de um time aplaude, a do
outro, xinga.
Em 2017, Rodrigo Caio, então
zagueiro do São Paulo, em partida contra o rival Corinthians, avisou ao árbitro
da ocorrência de um erro a favor de seu time, que veio a ser prontamente
corrigido. Depois do jogo, polêmica.
Ressalte-se que aprovar ou
reprovar a atitude conforme seja o time para o qual se torça ou em que se jogue
nada tem de ético ou moral, podendo ser uma postura, no máximo, moralista (ou
seja, pautada por uma moral hipócrita).
Seja sob o aspecto ético, seja do ponto de vista moral, abundam argumentos em favor de Rodrigo Caio, mas não foram poucos os que viram em seu comportamento uma espécie de traição – visão essa de difícil justificação qualquer que seja a corrente ética adotada, mas razoavelmente defensável no plano moral, pelos motivos inicialmente expostos.
E sob o prisma da Justiça? A
regra não o proibia ou obrigava a avisar o árbitro, sendo assim a conduta, sob
o aspecto normativo, neutra. Todavia, se ficasse calado, ajudaria seu time a
tirar proveito de um erro de arbitragem, o que se caracteriza como uma vantagem
indevida e, portanto, injusta. Em sentido contrário, argumentou-se que não é
praxe entre os jogadores comunicar esse tipo de situação, razão pela qual a
postura de Rodrigo teria prejudicado o seu time por criar uma espécie de
desequilíbrio em favor dos adversários.
Nota-se nas críticas feitas ao
atleta uma certa inversão de valores, como se honestidade fosse um sacrifício
(e não uma obrigação) e o errado fosse ele (e não os outros). As mesmas críticas
também são representativas de ideias ainda muito presentes na sociedade, como as
de que “os fins justificam os meios” ou de que “fogo se combate com fogo”, como
se a desonestidade alheia autorizasse a desonestidade própria.
Além disso, aqueles que enxergaram
na conduta do zagueiro um ato de traição ou injustiça contra seu clube ou seus
companheiros teriam que admitir a premissa de que o interesse do time se
resumia e se esgotava em vencer aquele jogo, ou aquele campeonato, ou, mesmo
que assim não fosse, que tal interesse fosse superior ao interesse genérico de
um esporte mais limpo.
Entretanto, não é difícil
vislumbrar que interesses generalistas, justamente por serem generalistas,
beneficiam a todos, inclusive aquele grupo, aquele time.
O Jogo é maior do que um jogo.
A Terra é maior do que uma terra. O Homem é maior do que um homem.
O time que não quer ser
prejudicado em campo, precisa, antes de mais nada, estar disposto a não
prejudicar o adversário. Da mesma forma, os grupos e pessoas que querem ter
seus direitos respeitados precisam aceitar os direitos alheios, até porque, no
fim das contas, são os mesmos. Aquele que pugna pela retirada de uma garantia para outrem precisa estar disposto a renunciar a essa garantia para si próprio.
Infelizmente, tal qual no
episódio narrado, encontramos inúmeros exemplos, na sociedade, em que
interesses menores, parciais, imediatos, se contrapõem a ações ou mudanças que beneficiariam
toda a coletividade, inclusive os titulares daqueles interesses, muitas vezes
apegados ao passado ou a devaneios ilusórios. Isso quando não rumam ao
retrocesso.
Pouco adianta conhecer os mais
sofisticados sistemas éticos ou invocar os mais arraigados valores morais quando
se acredita em vitória sem fair play.
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