Corrupção no Brasil: uma viagem a 1984

A iniciativa “Opening the Archives: documenting US-Brazil Relations, 1960s-1980s, uma parceria da Universidade de Brown e da Universidade Estadual de Maringá, disponibiliza documentos do Departamento de Estado americano que dizem respeito ao Brasil. Um desses documentos é o telegrama escrito pelo então embaixador dos EUA no Brasil, Diego Asencio, ao Secretário de Estado em Washington DC, em março de 1984.

O telegrama, que teve seu sigilo retirado 30 anos depois, reflete a imagem do Estado brasileiro aos olhos de um qualificado observador internacional, no ocaso do regime militar, e segue traduzido na íntegra para que os mais jovens, em especial os avessos ao estudo histórico por fontes confiáveis, possam ter uma ideia do estado de coisas deixado pela ditadura no que diz respeito ao tema corrupção:

E. O. 12356:   DECL: OADR

TAGS: PGOV, PINS, BR

ASSUNTO: CORRUPÇÃO E POLÍTICA NO BRASIL

 

1. (TEXTO COMPLETO)

2. INTRODUÇÃO E SUMÁRIO: Brasil é a nação onde “jeito” é Rei. Negociando favores, fazendo promessas, tendo amigos e família contratados em bons empregos, contornando regulações restritivas, em geral, conseguindo “ter a coisa feita”, são todas ações admiradas e esperadas na sociedade brasileira. Num país onde o “jeito” é a norma, a corrupção se torna parte indelével da vida política e econômica. O ano passado viu diversos escândalos envolvendo acusações contra alguns dos mais altos membros da Administração Figueiredo. Autoridades locais são vistas tão pouco melhores ou frequentemente até piores do que seus equivalentes federais. Com o declínio da economia nacional, mais e mais brasileiros estão certos dos “fatos” no entorno dos escândalos locais e nacionais. Mas quando perguntados por detalhes, eles recorrem a boatos e anedotas.

3. Apesar da comoção inicial das publicações na imprensa, seguidas por reportagens ocasionais quando um pedacinho particularmente suculento de informação emerge, tem havido pouco interesse nos escândalos, e muito poucas cabeças caíram. Mas, enquanto não tem havido o afloramento da indignação pública, a percepção, e acusações, de ilicitude, tingiu o Governo em todos os níveis, reduzindo a confiança pública em suas habilidades, e é fator inquestionável na aceleração do retorno dos militares aos quartéis. Possivelmente, pode até ter um efeito sobre a legitimidade e efetividade da próxima administração

4. Nós não pretendemos entrar nos detalhes desses escândalos nem comentar o mérito das acusações, mas avaliar o impacto da corrupção na política nacional. Uma breve pesquisa sobre os dramas do momento vai definir a cena. No nível nacional, há diversos escândalos que puseram nuvens sobre a Administração Figueiredo. O Ministro do Planejamento Delfim Netto é acusado de aceitar mais de seis milhões de dólares em propina de bancos franceses enquanto era embaixador na França; há muitas questões em como a Polônia foi autorizada a acumular mais de dois bilhões de dólares em dívidas com o Brasil a taxas de juros muito baixas; algumas Companhias muito grandes faliram sob circunstâncias suspeitas; e dinheiro destinado para projetos de assistência econômica desapareceu. A crise econômica fez o Governo parecer incompetente para muitos brasileiros; esses escândalos adicionaram um elenco sinistro aos problemas da nação. Adicionalmente, acusações de corrupção se estenderam aos postulantes à candidatura do PDS à presidência, Paulo Maluf e Mario Andreazza. Apesar das acusações serem usualmente vagas e sem provas, caso algum dos dois seja eleito, as acusações vão segui-los até o Planalto. FIM DA INTRODUÇÃO E SUMÁRIO. 

5. Uma das acusações em andamento envolve o Ministro do Planejamento Delfim Netto. No “Relatório Saraiva”, assim nomeado em razão do nome do adido militar em Paris que supostamente o escreveu, Delfim, juntamente com dois altos auxiliares, é acusado de tomar entre seis e dez milhões de dólares em propina de bancos franceses por arranjar contratos entre esses bancos, contratantes franceses e companhias paraestatais brasileiras enquanto foi embaixador na França. Até agora, esse relatório não foi tornado público. Delfim foi vigorosamente defendido por uma autoridade do Ministério das Relações Exteriores perante uma CPI, que apontou que as negociações ocorreram antes da chegada de Delfim em 1974 e que as negociações ocorreram entre as paraestatais, os bancos e o Governo francês, com envolvimento mínimo da Embaixada.

6. Até agora, Delfim tentou ficar acima da frigideira, ele não testemunhou na CPI e houve muito pouca conversa sobre obrigá-lo a tanto. As acusações parecem não ter feito diferença na relação do ministro com banqueiros internacionais de autoridades estrangeiras. De modo mais importante, Delfim ainda goza da confiança do Presidente. Ele tem tantos inimigos, entretanto, e é um alvo tão preferido para a hostilidade pública, que mesmo que fosse exonerado completamente, isso faria pouca diferença na sua imagem pública. A CPI, por outro lado, foi criticada por muitos por sua péssima condução das investigações. Apesar das alegações contra o antigo embaixador poderem não ser prováveis, muitos queriam usar a CPI como um indiciamento às políticas econômicas do Governo. Ao contrário, eles reclamam, ela se tornou uma atração de circo. Desde dezembro, quando os congressistas entraram em recesso, a CPI está inativa e a imprensa restou silente.

7. Relacionado ao “Relatório Saraiva” está o assunto das “polonetas”, ou débito polonês (veja 83 Brasília 8397). A Polônia agora deve mais de dois bilhões de dólares ao Brasil, a maior parte a taxas de juros muito baixas ou até negativas. As críticas a esse estado de coisas vêm de duas direções: a) A política de terceiro mundo do Ministério das Relações Exteriores custa ao Brasil mais do que ele ganha; ou b) alguém deve ter sido pago para autorizar taxas de empréstimos tão desvantajosas. Ninguém pode ser estúpido o suficiente para emprestar dois bilhões de dólares a essas taxas quando o país devia 80 bilhões de dólares a taxas muito altas; alguém deve ter sido comprado, a questão é saber quem foi. Outra CPI está investigando a dívida; não trouxe nenhuma acusação nem chegou a alguma conclusão. Sob um minucioso escrutínio, no mínimo este caso vai trazer à tona algum outro arranjo de “negócio criativo” com outros países.

8. Internamente, há muitos escândalos em escala nacional que são importantes. Talvez o maior e mais grave seja o das companhias falidas, mais notavelmente Capemi, Delfin e Coroa-Brastel. Todos são muito complicados e implicam alguns membros e órgãos do Governo Federal em algumas práticas de negócios muito questionáveis. O caso da Capemi envolve a falência dessa grande holding e a perda de milhões de dólares em investimentos de fundos de pensão na Companhia. Para piorar o assunto, a Capemi era gerida por ex-oficiais das Forças Armadas e detinha alguns fundos de associações militares. O grupo se tornou envolvido em inúmeros esquemas de negócios duvidosos, incluindo a participação na barragem de Tucuruí. O último enrola o filho do presidente Figueiredo, que é associado com uma companhia mantendo um contrato com a Capemi para remover madeira valiosa da área inundada pela barragem. O promotor alega que a madeira nunca foi retirada, apesar do serviço ter sido pago. Uma informação lateral interessante é a de que, aparentemente, o governador do Rio, Brizola, tentou intervir com a promotoria para manter o nome do jovem Figueiredo fora do caso. O esforço falhou e o episódio deixou alguma amargura entre Figueiredo e Brizola. O caso está sendo julgado no Rio e muitos brasileiros sentem que está sendo silenciado pela imprensa por pressão do Governo.

9. No caso da Mandioca, fundos que deveriam ajudar os fazendeiros do Nordeste a enfrentar a seca foram desviados para bolsos desconhecidos. Um promotor federal que investigava o caso foi assassinado a sangue frio, e seu assassino, um policial, fugiu com a ajuda da Polícia Militar local. O caso ainda está sendo investigado e vários policiais foram presos. No Rio de Janeiro, há o célebre “Caso Baumgarten”, do jornalista que foi morto enquanto investigava atividades do Serviço Nacional de Inteligência (SNI). Apesar do assassinato ainda não ter sido resolvido, acredita-se que o SNI esteja por trás do crime.

10. Em nível geral, muitos brasileiros médios acreditam que o Governo Federal seja corrupto. Este criticismo se estende ao grande número de oficiais militares da reserva que ocupam posições de responsabilidade nas companhias paraestatais, que são mais de 500. O potencial para suborno é enorme e o senso comum brasileiro diz que a oportunidade está sendo aproveitada. De fato, o sistema paraestatal é visto como um método para empregar os oficiais superiores do Exército que entram para a reserva, e seus amigos, apesar de que tais oportunidades parecem ter sido duramente reduzidas ao longo do último ano ou algo assim. As gratificações que vêm junto com trabalhar para uma dessas companhias contrastam gravemente com os problemas econômicos da maioria dos outros brasileiros. Tais críticas não se aplicam aos postos e fileiras das Forças Armadas, que ainda são vistos com respeito.

11. Passando às eleições, a não ser que se esteja falando com um malufista convicto, a simples menção ao ex-governador de São Paulo e atual candidato à presidência provavelmente trará não solicitados comentários sobre a corrupção do homem. Paulo Maluf tem uma extensa fortuna pessoal e é pródigo em usá-la para influenciar pessoas. Quando Governador, ele tomou vantagem do Tesouro do Estado para fazer gastos eleitoreiros, até em áreas bastante fora de sua jurisdição; há ambulâncias na remota Amazônia e cidades do Nordeste com o emblema “doada pelo Governo de Paulo Maluf”. Como Maluf já tem sua própria fortuna (e sua esposa também é rica por direito próprio) ele é mais acusado de ser ambicioso por poder do que por dinheiro.

12. Ministro do Interior e candidato à presidência, Mario Andreazza enfrenta seus próprios problemas de imagem. Ele é acusado pelos seus detratores de usar os consideráveis poderes de sua posição para avançar sua candidatura e recompensar seus amigos e seguidores. Andreazza recentemente anunciou diversos projetos de grande ajuda para o Nordeste, de onde o mais importante bloco de eleitores na convenção do PDS virá. Às cínicas acusações de que ele está comprando votos, apoiadores respondem que ele está ajudando uma região que foi ignorada por muito tempo. Esses grandes projetos, geralmente estradas ou sistemas de irrigação, são vistos por muitos como uma grande maneira de amigos do governo ficarem ricos às custas do gasto público. O sobrepreço usualmente é enorme, e as histórias de mão-de-obra de má qualidade (ou nenhum trabalho feito) são abundantes. A reputação de Andreazza para a corrupção vem de muito anos atrás. Quando ele foi Ministro dos Transportes no início dos anos 70, esteve em uma posição de enriquecer pessoalmente, e muitos brasileiros acreditam que ele assim o fez.

13. O outro candidato majoritário declarado do PDS, vice-presidente Aureliano Chaves, é amplamente considerado o mais honesto de todos os candidatos. Apesar de ser membro do alto-escalão do Governo, ele conseguiu se manter separado do desencantamento popular com esta Administração.

14. No nível local e estadual, há grande variação. Os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul são ambos governados por homens do PDS que concorreram parcialmente com plataformas anticorrupção. Ambos os governadores têm muito boas reputações e se mexeram rápido para afastar autoridades suspeitas. As enchentes de 1983 deram amplas oportunidades para liberar fundos a serem desviados, mas todas as contas indicam que o dinheiro foi distribuído de maneira justa e eficiente. Entretanto, há uma dura distinção a ser feita no Sul entre a qualidade do governo local e a qualidade da liderança nacional.

15. Contrastando duramente com o Sul, o Nordeste é percebido por aqueles de dentro e de fora como abundante em corrupção. O sistema é uma teia de laços familiares, negociais, políticos e institucionais que estão cheios com aquilo que se considera conflito de interesses. O nepotismo abunda. Bancos estatais provém crédito aos negócios que são amigáveis aos líderes do Estado. A oposição (o PMDB) é feita de políticos que já participaram do sistema e que iriam presumivelmente manter as mesmas práticas se retornarem ao gabinete. Queixas contra corrupção por políticos de fora do poder no Nordeste parecem almejar mais ganho político do que um desejo real de limpar o Governo.

16. Acusações de corrupção contra o governo anterior foram um grande fator na vitória de Leonel Brizola em 1982, no Rio de Janeiro. Apesar de ele mesmo ser amplamente visto com um homem honesto, ocorreram uma série de escândalos na sua Administração que feriram sua imagem como administrador. Como em outras cidades, isso envolvia desvio de fundos públicos e uso impróprio de bens públicos. Em cidades como Rio e São Paulo, a corrupção é uma questão, mas fica atrás de tantas outras questões como crime, desemprego, poluição e as outras dificuldades de viver em uma grande cidade. A Polícia e outras autoridades públicas são vistas mais como incompetentes do que venais.

17. COMENTÁRIO: Numa época de austeridade econômica e com a perspectiva de mais do mesmo pela frente, é natural que os brasileiros comecem a olhar em volta por alguém ou algo para culpar por seus problemas após anos de “milagre brasileiro”. É difícil para eles acreditar que alguém não está manipulando a economia. Ao mesmo tempo, os casos acima fornecem alimento suficiente para essa ânsia. Um novo ponto em todos esses casos é que muito poucas acusações concretas foram feitas e ainda menos condenações foram obtidas. Parte disso pode ser devido à reticência em cobrar os militares no ainda muito poderoso Governo Federal. E, é claro, acusações são baratas e provas são muito difíceis de aparecer. O que está claro, entretanto, é que a corrupção, real e imaginada, está erodindo a confiança dos brasileiros no seu Governo. Muitas pessoas atribuem pelo menos parte da impopularidade da Administração Figueiredo ao fato de que ninguém foi punido nesses casos em que houve óbvio malfeito. Os escândalos feriram a imagem do presidente, mas acusações de ilícito ainda não foram direcionadas a ele.

18. Qual, então, vai ser o impacto da corrupção na politica do Brasil? A nível nacional, a visão generalizada de que o governo é corrupto está dando pelo menos algum ímpeto ao movimento por eleições diretas. Para muitas pessoas, eleições indiretas são apenas um meio para manter a velha turma no poder, com suas mãos no cofre público. E apesar de o PMDB e outros partidos de oposição não serem vistos como muito melhores do que o Governo, uma eleição direta poderia ao menos dar ao brasileiro comum a chance de chutar esse conjunto de vagabundos. Se ocorrerem eleições indiretas, a corrupção não será uma das principais questões. Na corrida pela indicação do PDS nenhum dos candidatos é tendente a abordá-la prioritariamente. Maluf e Andreazza não vão querer abrir a caixa de Pandora, e Chaves não vai querer indispor o Governo desnecessariamente.

19. Numa eleição direta, corrupção pode muito bem ser assunto de campanha. Entretanto ela pode, em nossa estimativa, ficar abaixo de outras questões, tais como a economia e a dívida externa. Nenhum dos possíveis candidatos, especialmente os governadores, estaria totalmente imune de contra-acusações contra si, sua administração ou seu partido, caso decida fazer disso uma questão.

20. O efeito da corrução nos militares e seu papel no processo político é complexo, mas é basicamente um fator em favor do retorno aos quartéis. Entre muitos oficiais, da mais baixa às mais altas patentes, há uma forte crença de que os últimos 20 anos no poder corromperam os militares, especialmente os mais altos comandantes, e que agora é hora de deixar a política e as suas tentações e voltar às suas atividades estritamente militares, antes que o dano seja muito grande. Entre civis, acusações de um Exército corrupto são frequentemente acompanhadas da descrição de Forças Armadas “moralmente exaustas”, sem o menor sinal dos objetivos da Revolução de 1964. Isso sugere um forte ímpeto de devolver o poder aos civis o quanto antes, mas, por outro lado, o medo de “argentinização”, ou julgamentos de militares por crimes cometidos no oficialato, é um forte argumento para assegurar que pelo menos a próxima presidência seja aceitável aos militares e não vai se voltar contra eles como convenientes bodes expiatórios após assumir o cargo. A síntese dessas duas questões é “vamos sair, mas não muito precipitadamente”.

21. Nós esperamos ver o Congresso lentamente assumindo um papel maior aqui. Depois de anos de inatividade, o Congresso está mais inclinado do que nunca em desafiar a Administração e questionar suas práticas, dado o poder do Executivo e a péssima performance das CPI´s até hoje. Entretanto, nós não esperamos que o Congresso assuma um papel de real fiscalização no futuro próximo.

22. A nível local, a percepção da corrupção varia de região para região, apesar da crença de que o Governo Federal é corrupto seja geral, no Nordeste, onde o poder ficou concentrado em poucas mãos por anos, há pouca esperança de mudança. De fato, os fracos foram trazidos ao sistema pelos poderosos por meras migalhas que caem da mesa. Nas regiões mais industrializadas, há pelo menos a expectativa de que o Governo faça algo sobre a corrupção. Isso, e a insatisfação com outros serviços municipais, vai provavelmente desempenhar um importante papel na longevidade das futuras administrações estaduais.

23. Na análise final, corrupção e ilicitude são fatos da vida aceitos no Brasil, mas não são de esmagadora importância política e econômica. O brasileiro médio está preocupado e até bravo com ela, mas isso forma uma parte de uma frustração maior com a inflação, desemprego e uma economia que continua em declínio.

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