A Covid 19 e os números do Registro Civil

Valiosa ferramenta colocada à disposição da sociedade brasileira, o Portal da Transparência do Registro Civil vem sendo utilizado para questionar o número de mortes por Covid-19 no Brasil.

A enganação consiste em confrontar os dados do Registro Civil com os dados enviados pelas secretarias de saúde, levantando suspeitas quanto a esses últimos.

Ocorre que são informações diferentes, e para explicar isso vamos para o começo, ou pior, para o fim: a morte.

Uma vez constatado o falecimento, emite-se um documento, a DO (declaração de óbito), cujo preenchimento é de responsabilidade do médico que atesta o óbito. Nenhum outro profissional tem permissão para preencher e assinar uma DO.

A DO é emitida em três vias: uma fica arquivada no estabelecimento responsável pela constatação do óbito, outra é encaminhada à Secretaria de Saúde do Município onde ocorreu o evento e outra é encaminhada pela família ou agente funerário ao cartório de Registro Civil onde será lavrado o registro de óbito.

Feito o registro, o cartório dispara informações para diversos órgãos e entidades, dentre as quais a CRC (Central de Informações do Registro Civil), responsável pelo Portal da Transparência.

A CRC é de organização relativamente recente. Atualmente disciplinada pelo Provimento nº 46/2015 da Corregedoria Nacional de Justiça, tem raízes no Decreto nº 8.270 de 26 de junho de 2014, que criou o Sistema Nacional de Registro Civil – SIRC.

O recebimento dos dados pela CRC não acontece em tempo real, conforme se explica nas notas constantes do próprio portal. Quando se consulta por data de óbito, os dados começam a adquirir alguma consistência cerca de 15 dias depois da data consultada, e o portal simplesmente reflete as informações acumuladas no sistema.

Outro destinatário das informações do Registro Civil é o IBGE, numa relação bem mais longeva, com origem no Decreto nº 70.210/1972. As estatísticas produzidas pelo IBGE com base nos dados do Registro Civil não são divulgadas antes de consolidadas e depuradas dentro da metodologia previamente estabelecida. Para se ter um exemplo, as estatísticas referentes ao ano de 2019 somente foram divulgadas em dezembro de 2020.

Além disso, o IBGE promove o pareamento entre os dados de mortalidade do Registro Civil e os dados do SIM - Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, de modo a obter estatísticas de sub-registro ou de subnotificação. A julgar pelo que ocorre com anos anteriores, o pareamento de dados referentes ao ano de 2020 somente deve estar disponível no ano de 2022 ou 2023.

A entrada de dados no SIM se dá por aquela via da DO que fora encaminhada à Secretaria Municipal de Saúde, ou seja, é o mesmo documento que embasa o registro de óbito. No fim das contas, os dados se encontram no IBGE com a finalidade de produção de estatística e se respaldam uns nos outros, conferindo robustez e confiabilidade às informações de mortalidade no Brasil.

Já as informações de mortalidade por Covid 19 que estamos acostumados a ver toda noite no telejornal têm outra fonte: provêm das notificações feitas pelas secretarias de saúde no Sistema de Vigilância Epidemiológica, nos termos do Guia de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde, cuja última versão é do último dia 27 de abril.

Para essa finalidade, a confirmação do óbito por Covid se dá por exame clínico ou laboratorial e a comunicação deve ser feita dentro do prazo de 24 horas a partir do óbito, embora existam gargalos pontuais e possa ocorrer de a confirmação vir bem depois da ocorrência do óbito.

Nessa esteira, o primeiro ponto a se observar é que as notificações no âmbito da vigilância epidemiológica são destinadas a orientar e avaliar as ações imediatas, enquanto as estatísticas do IBGE e do SIM têm por objetivo a avaliar e formular políticas públicas no médio e longo prazo. As primeiras são rapidamente divulgadas e estão sujeitas a correção a qualquer tempo, enquanto as segundas dependem de tempo para que possam passar por análise e crítica e somente são divulgadas após a sua consolidação.

Por seu turno, o Portal da Transparência do Registro Civil confere acesso a dados brutos que acabam ficando arquivados nos cartórios como resultado de sua atividade primária, que é dar certeza ao evento morte e segurança aos seus efeitos civis. É fundamental, portanto, conhecer e entender de onde vêm esses dados antes de usá-los, antes de compará-los com informações que vêm de outras fontes.

No caso específico da Covid19, penso que o mais importante seja o seguinte:

- os dados acessíveis no Portal da Transparência têm por origem a DO, firmada pelo médico que atesta o óbito, da qual pode constar, no campo que indica a causa da morte, o diagnóstico confirmado de Covid19, suspeita de Covid19 ou pode não haver menção à doença. Óbitos suspeitos são exibidos em conjunto com óbitos confirmados. Se a suspeita for descartada ou sobrevindo a confirmação sem que tenha havido menção à doença, o assento de óbito, salvo em situações excepcionalíssimas, não será retificado.

- os dados informados pelas secretarias e divulgados pelo Ministério da Saúde ou pelo consórcio de veículos de imprensa têm por origem um exame clínico ou laboratorial e são notificados através do Sistema de Vigilância Epidemiológica; não há mistura entre óbitos suspeitos e confirmados e caso se encontre algum equívoco a correção pode ser feita a qualquer momento.

- os dados oriundos dessas fontes tendem a convergir, mas dificilmente irão coincidir, pois o evento “morte por covid” gera por consequência dois outros eventos: o registro civil e a notificação para fins de vigilância epidemiológica, que não são simultâneos e não ocorrem sempre na mesma ordem. A confirmação da doença sempre ocorrerá antes da notificação, mas não necessariamente antes do registro ou a tempo de constar na DO.

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