A mentira da vez

É lamentável que ainda seja necessário desmistificar as suspeitas quanto ao número de vítimas da Covid19 no Brasil.

Apesar de vivermos em luto constante, seja pelas notícias que chegam pela mídia, seja pelo falecimento de pessoas próximas, o Presidente da República levantou mais uma vez a hipótese de “supernotificação”, usando uma tabela similar à que segue:

O raciocínio apresentado é de que, como todo ano apresenta um aumento considerável no número de mortes, seria esperado que morressem mais pessoas em 2020 do que em 2019, mas, descontadas as quase 200 mil mortes atribuídas à Covid, o ano de 2020 teria apresentado uma queda na mortalidade, o que seria indício da tal “supernotificação”.

Esses dados não são falsos, foram extraídos ontem do Portal da Transparência do Registro Civil. Mas salta aos olhos que possa existir um aumento tão grande de mortalidade em anos como 2016 e 2018 sem que nenhum evento extraordinário tenha ocorrido no País, ou que alguém razoavelmente informado possa crer normal um padrão tão alto de aumento da mortalidade anual (aplicado retroativamente chegaríamos a zero morte em poucos anos para trás).

Há de se levantar a possibilidade de que o Portal da Transparência ainda não esteja completamente abastecido com os dados dos registros de óbito.

Em pesquisa no Sistema de Recuperação Automática do IBGE (SIDRA), na mesma data, os dados encontrados são bem diferentes: 


Como já expliquei aqui, o IBGE é abastecido pelos mesmos dados divulgados no Portal, mas divulga suas estatísticas após submetê-los aos seus critérios metodológicos, o que as torna mais confiáveis do que uma simples consulta a dados abertos.

Infelizmente as estatísticas de 2020 ainda não foram divulgadas, mas já está claro que uma variação anual na faixa dos 15% está longe ser considerada normal.

Uma comparação entre os números do IBGE e do Portal da Transparência reforça a hipótese de que o portal ainda esteja carente de dados relativos a anos anteriores, e forneça números mais confiáveis a partir de 2018, ano em que foi publicado:


Essa explicação faz ainda mais sentido quando se conhece a realidade dos cartórios e sabe que em algumas unidades da Federação a informatização e centralização dos dados já se encontrava mais avançada quando da criação do portal. Isso fica evidente quando se comparam os números relativos aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro: 


Não é razoável supor que de 2017 para 2018 o número de mortes no Estado do Rio de Janeiro tenha praticamente dobrado.

Por tais razões, entendo que o Portal da Transparência, com relação ao momento presente, traz informações bastante confiáveis, mas o mesmo não se pode dizer do período anterior a 2018.

Outra afirmação repetida de tempos em tempos pelos que insistem em negar a gravidade da pandemia é que o número de mortes por pneumonia em 2020 diminuiu artificialmente porque foram atribuídas à Covid19.

De fato, no Portal da Transparência do Registro Civil os casos suspeitos e confirmados de Covid19 são exibidos em conjunto. Talvez por isso o número de mortes associadas à doença em 2020 (198.363) seja ligeiramente maior do que o divulgado pelos veículos de imprensa (194.976) e pelo Ministério da Saúde (194.949).

Mas,  especulação por especulação, não seria de se estranhar que as medidas de isolamento social, uso de máscaras e higiene das mãos tivessem efeito sobre outras doenças do trato respiratório, reduzindo, por exemplo, as mortes por pneumonia causada por outros microrganismos.

De todo modo, considero intelectualmente desonesto apontar indício de supernotificação por conta das mortes por pneumonia e não identificar indício de subnotificação quando se nota expressivo aumento nas mortes por causa indeterminada, síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e causas cardiovasculares inespecíficas:


Por fim, outro dado importante é que antes de março de 2020 a Covid19 era uma causa mortis inexistente no Brasil. Portanto, para se ter o real efeito da doença ao longo de um ano inteiro de pandemia, pode ser feita uma comparação entre o período de abril de 2020 a março de 2021 e os mesmos períodos imediatamente antecedentes. O resultado é o seguinte:


Os números falam por si.

O prezado leitor e a prezada leitora a esta altura podem estar pensando que ao questionar esses números o Presidente da República não estivesse mentido, mas tenha sido induzido a erro pela inconsistência dos dados do Portal.

Bem, se foi possível escrever este texto com uma dúzia de cliques na internet, imagine-se o grau de esclarecimento e detalhamento que poderia obter aquele que está rodeado de assessores e tem a seu dispor os técnicos do IBGE e do Ministério da Saúde.

Para acreditar que tal bravata não resulta de descarada mentira, é preciso reconhecer no sujeito uma vergonhosa incompetência.


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