Grandes números, pequenas conclusões: o método
Publicado anualmente pela Receita Federal desde 2007, o relatório “Grandes Números IRPF” traz informações referentes às declarações do Imposto de Renda de Pessoas Físicas. Neste momento em que se discute o arremedo de Reforma Tributária que tramita no Congresso, aguarda-se a divulgação dos dados do exercício de 2020, que se refere aos rendimentos recebidos em 2019.
Por enquanto, o relatório mais
recente disponível diz respeito ao ano-calendário 2018.
Trata-se de um monumento à
desigualdade: mesmo incidindo a partir de valores relativamente baixos, menos
de 15% da população declara imposto de renda. Embora parte dos outros 85% tenha
auferido rendimentos que até seriam tributáveis, mas não são declarados por
serem informais ou ilegais, a imensa maioria da população não declara porque aquilo
que tem ou ganha oscila entre o nada e o muito pouco. Dos que declaram, 57% são
homens, percentual que muda para 65,34% dentre aqueles com renda mensal
superior a vinte salários mínimos.
Também há enorme desigualdade na
renda dos assalariados em comparação com os recebedores de lucros e dividendos,
e entre os rendimentos declarados quando comparamos as diversas ocupações.
Essa desigualdade foi ressaltada
em várias notícias publicadas sobre o assunto, mas alguns veículos e
comentaristas descuidados caíram na armadilha de analisar os dados de maneira
equivocada, como se fosse um ranking de salários ou das profissões mais e menos
rentáveis.
Não é bem isso.
Para começar, estamos falando de
um universo de pessoas limitado pelos que declaram e um universo de rendimentos
limitado pelo que circula na economia formal. Aluguéis não declarados, imóveis
vendidos “por baixo”, comércio e serviços prestados sem nota fiscal são apenas
alguns exemplos do quanto fica de fora dos dados da Receita.
Os rendimentos declarados se
dividem em três categorias: tributáveis, sujeitos a tributação
exclusiva/definitiva na fonte e isentos/não tributáveis.
Dentre os rendimentos tributáveis
estão a remuneração do trabalho assalariado e não assalariado, além de
aposentadorias, pensões e os alugueis recebidos por pessoas físicas.
Nas demais categorias, entram
inúmeros outros rendimentos, tais como os resultados de aplicações financeiras,
ganhos de capital e no mercado de capitais, PLR, décimo-terceiro, parcelas
isentas de certos tipos de rendimento, lucros e dividendos.
Nota-se que tanto de maneira
global como por tipo de rendimento há uma mistura entre remunerações do
trabalho e remunerações do capital. Além disso, cada contribuinte indica uma
única ocupação principal, mesmo que a pessoa exerça diversas atividades
remuneradas ou tinha diversas fontes de renda.
Portanto, listar as ocupações de
maior renda média declarada como sendo “as mais bem pagas” não é correto. Mais
errado ainda é pegar essa renda média mensal e indicar como sendo o “salário
médio” dessa ou daquela profissão.
Outro problema é embaralhar
rendimentos brutos com rendimentos líquidos. Isso acontece não só quando se
misturam diversos tipos de rendimento, mas também quando não se abatem certas
despesas necessárias à sua obtenção, e o próprio imposto apurado na declaração.
No caso dos médicos isso fica bem
evidente. Vamos pensar em dois profissionais, A e B, que receberam no ano R$
300.000,00 de seus pacientes e mantém o seu consultório com uma despesa anual
de R$ 60.000,00, mas o primeiro atua como pessoa física e o segundo criou uma
pessoa jurídica. Desprezando outros dados para simplificar e supondo que o
médico B distribuiu para si todo o lucro dentro do exercício, o quadro é o
seguinte:
Médico |
R. Tributável |
R. Isento |
Livro Caixa |
Imposto devido |
A |
300.000,00 |
0,00 |
60.000,00 |
55.000,00 |
B |
0,00 |
206.000,00* |
0,00 |
0,00 |
* resultado
esperado considerando a tributação pelo lucro presumido
Assim, de acordo com a fórmula
usada pelos principais veículos de comunicação para divulgar os “ganhos” médios
de cada profissão (soma dos rendimentos dividida pelo número de declarantes,
sem qualquer dedução), o médico A apareceria com a média mensal de R$ 25.000,00
e o médico B com a média de R$ 17.166,66. Entretanto, ambos receberam pelos
seus serviços a mesma quantia, e enquanto B embolsou, em média, os mesmos R$
17.166,66 por mês, A teve uma remuneração mensal líquida de R$ 15.416,66.
Por isso, se vamos comparar as
rendas das profissões, o mínimo a fazer é usar um método que diminua as
distorções, e se não dá para comparar bruto com bruto (pois não temos o
faturamento dos profissionais “pejotizados”) ao menos devemos comparar os
valores líquidos.
Para tanto, é preciso estabelecer
o Rendimento Tributável Líquido (RTrL), composto pelo rendimento tributável
total, abatido das deduções do livro caixa e imposto pago, a fim de que possa
ser comparado com os demais tipos de rendimento, ou somado com eles para
obter-se uma renda mensal média que efetivamente permita alguma comparação
entre as ocupações principais indicadas.
O abatimento das despesas
lançadas no Livro Caixa é indispensável porque, ao contrário das outras
deduções, diz respeito aos gastos necessários à própria obtenção dos
rendimentos, tais como salários de empregados, encargos trabalhistas, aluguel,
materiais, entre outros.
É bem verdade que alguns
declarantes, mesmo tendo esse tipo de despesa, não usam tal dedução porque
adotam o modelo simplificado, que adota um desconto padrão. Mas se as despesas
que deixam de ser lançadas seguem a média daquelas que constam das declarações
completas, esse valor é de pouca importância, já que as deduções do livro caixa
representam apenas 7% do total de deduções legais.
Quando se fala em comparar as
rendas médias declaradas por ocupação principal, é preciso reconhecer que,
mesmo com um método aprimorado, ainda há limites, e o mais evidente deles é que
continuam misturados rendimentos do trabalho (e entre estes, de trabalhos
diferentes) e remuneração do capital (que muitas vezes independe da profissão
da pessoa).
Outra limitante é a classificação
das ocupações definida pela RFB. No caso do IRPF, a estatística é um subproduto
da atuação fiscal, e as classificações são adotadas no interesse do Fisco, não
exatamente para a produção dos melhores dados analíticos.
E o resultado disso é que não há
um critério uniforme de definição das ocupações principais disponíveis. Algumas
dizem respeito a uma atividade econômica (Produtor na exploração agropecuária)
outras à formação (Enfermeiro de nível superior, nutricionista, etc..) ou
função (Policial Militar), outras à qualidade do empregador (Advogado do setor
público, Procurador da Fazenda etc..) e outras ainda mais específicas (Montador
de aparelhos e instrumentos de precisão e musicais).
Há ocupações com mais de um
milhão de declarantes, outras com menos de mil. As duas categorias com mais
declarantes são “outros” e “não informado”, que somadas correspondem a quase
37% do total.
Embora imperfeita, a fórmula que
usa os rendimentos tributáveis líquidos é menos imprecisa do que simplesmente
somar rendimentos, alguns brutos, outros líquidos, e dividir pelos declarantes.
Comparando ambas, o quadro das vinte profissões que declararam maior rendimento
médio (que foi o de maior repercussão nacional) fica assim:
Divulgado na mídia (média mensal, em
R$) |
Método proposto (média mensal, em R$) |
||
Titular de Cartório |
103.141,14 |
Membro do Ministério Público |
47.211,24 |
Membro do Ministério Público |
53.493,48 |
Membro do Poder Judiciário e de Tribunal de Contas |
45.573,09 |
Membro do Poder Judiciário e de Tribunal de Contas |
51.773,10 |
Titular de Cartório |
38.190,53 |
Diplomata E Afins |
39.571,66 |
Diplomata E Afins |
37.245,12 |
Advogado (setor público) |
30.884,91 |
Médico |
26.792,10 |
Médico |
30.525,78 |
Advogado (setor público) |
26.101,16 |
Servidor das carreiras do Banco Central, CVM e Susep |
28.936,15 |
Servidor das carreiras do Banco Central, CVM e Susep |
24.671,83 |
Servidor das carreiras de Auditoria Fiscal e Fiscalização |
27.845,86 |
Servidor das carreiras de Auditoria Fiscal e Fiscalização |
23.800,45 |
Atleta, Desportista e Afins |
25.979,99 |
Atleta, Desportista e Afins |
21.832,73 |
Piloto de Aeronaves, Comandante de Embarcações |
25.100,13 |
Piloto de Aeronaves, Comandante de Embarcações |
21.496,19 |
Dirigente ou administrador de Partido Político, Organização Patronal,
Sindical, Filantrópica e Religiosa |
21.437,94 |
Dirigente ou administrador de Partido Político, Organização Patronal,
Sindical, Filantrópica e Religiosa |
20.853,65 |
Ator, Diretor de Espetáculos |
21.094,33 |
Ator, Diretor de Espetáculos |
19.515,09 |
Agente de Bolsa de Valores, Câmbio e Serviços Financeiros |
17.725,62 |
Decorador e Vitrinista |
17.068,23 |
Decorador e Vitrinista |
17.312,74 |
Agente de Bolsa de Valores, Câmbio e Serviços Financeiros |
16.856,95 |
Engenheiro, Arquiteto e afins |
16.580,45 |
Engenheiro, Arquiteto e afins |
15.121,07 |
Servidor do Poder Judiciário |
16.487,67 |
Produtor Agropecuário |
14.918,55 |
Servidor do Poder Legislativo |
16.282,46 |
Servidor do Poder Judiciário |
14.502,27 |
Servidor das carreiras de Gestão Governamental |
16.204,95 |
Agrônomo e afins |
14.355,99 |
Agrônomo e afins |
15.912,73 |
Empresário* |
14.297,52 |
Professor do Ensino Superior |
15.643,71 |
Advogado |
14.153,17 |
*Dirigente, presidente e diretor de Empresa Industrial, Comercial ou
Prestadora de Serviços
Notam-se poucas mudanças. No fim
da lista, advogados, empresários e agropecuaristas entram no lugar de professores
do ensino superior, servidores do legislativo e gestores governamentais. No
topo, titulares de cartório caem para a terceira posição, promotores assumem a
primeira e os médicos entram no top-5.
Daqui poderíamos partir para uma
infinidade de considerações, mas o objetivo deste post é apenas depurar o
método, para que, tão logo estejam disponíveis os números do exercício de 2020
(ano-calendário 2019) possam ser extraídas desses grandes números algumas
pequenas conclusões.
Comentários
Postar um comentário