O naufrágio

 A noite foi de terror. Entre gritos e trovões, luzes e clarões, o grande barco sucumbiu à tempestade.

Pela manhã, ainda garoava; enrolado numa manta cinza escuro, o capitão percorria a praia fluvial, observando os corpos enfileirados.

- Tudo isso tava no meu barco? Será? Este aqui tá com cara que foi desovado aí no rio, agora vão botar na minha conta também! E esse outro, esse eu vi embarcando, já tava só o pó, não ia chegar vivo no destino de qualquer jeito...

Chamou pelo imediato, que também fora um dos primeiros a ser resgatado.

- Precisa tirar logo esses corpos daqui, vai pegar mal para mim. Cadê os médicos para fazer autópsia? Quero ter certeza se esse pessoal morreu afogado mesmo.

- É que... bom, capitão, eles acharam mais importante continuar as buscas, ajudar os sobreviventes...

- Ah... teve muitos sobreviventes, né? Isso sim tem que ser capa de jornal... agora ficam aí, com cara de enterro... olha lá os jornalistas, já tão batendo foto dos presuntos... urubus!

Nesse momento, ele se exaltou. Sua voz inconfundível alertou os repórteres, que correram em sua direção. Não teve como fugir.

- Capitão, o senhor não recebeu os alertas da meteorologia? Outras embarcações preferiram ficar no porto até as condições melhorarem...

- A gente tem que ouvir os dois lados... o meu imediato aqui, homem experiente, tem uma prótese no joelho. Toda vez que vai chover forte, o joelho dele dói. Ontem, o joelho dele não estava doendo, então eu zarpei. Tinha uma carga de perecíveis que ia estragar se eu ficasse no porto, não podia arriscar um prejuízo desses...

- Capitão, é verdade que não tinha colete salva-vidas para todo mundo? Se tivesse salva-vidas para todos, muitas mortes teriam sido evitadas...

- É por isso que eu não gosto da imprensa... quem disse que colete salva-vidas salva vidas? Já tentou nadar de colete? É ruim, incomoda, atrapalha, periga o sujeito morrer por causa do colete... se você dá um colete na mão de cada passageiro que entra no barco, o que o cara vai pensar? Que o barco pode afundar! O importante é, desde cedo, as crianças aprenderem a nadar... e esse pessoal que exagera na refeição, fica gordo, também, chega numa hora dessas não consegue nadar... agora, se o sujeito não sabe nadar, a culpa é minha?

- Capitão, a Marinha está dizendo que pela quantidade de vítimas e de carga que está se acumulando nas margens, o barco estava superlotado. O senhor confirma essa informação?

- Menina, a única coisa que está confirmada aqui é essa sua cara de imbecil. Acabou a entrevista.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Pato Amarelo e a História

Resistência Analógica

(Im)parcialidade