Grandes números, pequenas conclusões: comparando as profissões

Os dados do IRPF não formam um ranking de salários. Mas, como todo mundo adora um ranking, seguem as 20 ocupações principais de mais alta renda média declarada no ano-calendário 2020, conforme o método aqui proposto:

Rank

Ocupação principal do declarante

Declarantes

Média mensal (R$)

1

Membro do Ministério Público

14.329

 49.241,40

2

Diplomata e afins

2.760

 47.341,96

3

Membro do P. Judiciário / Trib. de Contas

21.206

 46.174,62

4

Titular de Cartório

10.341

 41.686,20

5

Advogado setor público, procurador, etc..

29.849

 27.982,91

6

Médico

414.432

 26.715,71

7

Servidor do B. Central, CVM e Susep

4.938

 26.369,79

8

Fiscais e auditores fiscais

63.313

 24.701,07

9

Atleta, desportista e afins

6.311

 22.040,13

10

Piloto, comandante, oficial de máquinas

12.897

 21.405,13

11

Agente Bolsa de Valores, câmbio, etc...

6.551

 18.266,75

12

Produtor na exploração agropecuária

412.377

 18.217,82

13

Ator, diretor de espetáculos

4.898

 17.327,49

14

Empresário*

2.430.234

 16.816,86

15

Agrônomo e afins

40.606

 16.161,63

16

Advogado

365.375

 15.746,89

17

Engenheiro, arquiteto e afins

539.915

 15.575,78

18

Servidor das carreiras do P. Judiciário

213.209

 15.508,66

19

Servidor das carreiras do P. Legislativo

43.986

 15.201,25

20

Jornalista e repórter

54.874

 15.153,42

MP

Total 20+

4.692.401

18.002,52

MG

Total geral dos declarantes

31.634.843

8.374,02

* Dirigente, presidente, diretor de empresa industrial, comercial ou prestadora de serviços

Esse é o resultado da combinação entre a ocupação principal indicada – e cada contribuinte pode informar apenas uma – e a renda média declarada, que pode vir de diversas fontes, algumas das quais até maiores do que a da ocupação principal declarada.

A título de exemplo, um mesmo promotor de justiça pode ter, além da renda proveniente do seu subsídio mensal e outras verbas decorrentes de seu cargo, rendas decorrentes de atividade docente, alugueis, aplicações financeiras, atividade rural, herança, direitos autorais, etc...

Isso não significa que a comparação entre as rendas e ocupações declaradas seja inútil, mas se a ideia é discutir a remuneração desse ou daquele ofício, os dados a se analisar são aqueles disponibilizados pelos portais da transparência, quando se trata do setor público, ou das consultorias especializadas, quando se trata do setor privado.

As ocupações acima correspondem a pouco menos de 15% do total de declarantes, ou cerca de 2,25% do total da população brasileira. A renda média dessas ocupações é mais do que o dobro da média geral.

Considerando que a Receita oferece aos declarantes 135 opções de ocupação principal, um grupo de 20 corresponde a 14,81% das ocupações, e o grupo das 20 com maior renda média declarada contém uma quantidade de declarantes que corresponde a 14,83% do total de declarantes, o que, aparentemente, é mera coincidência, afinal, não há um critério uniforme para a definição dessas ocupações.

Se passarmos para o grupo seguinte, ou seja, da 21ª à 40ª ocupação com maior renda média declarada, a quantidade de declarantes cai para apenas 6,04% do total, embora ainda corresponda a 14,81% das ocupações possíveis.

Como já foi adiantado na depuração do método, há ocupações com milhões de declarantes, outras pouco passam de mil. Os advogados do setor público estão separados daqueles do setor privado, mas os médicos estão misturados. Os membros do Poder Judiciário estão separados dos servidores desse mesmo poder, mas dirigentes, presidentes e diretores de empresas estão juntos, qualquer que seja o seu porte ou ramo de atuação.

A título de exemplo, quem olha para a quantidade de ocupações na lista, pode dar grande importância para o fato de que oito – ou quase metade - dessas vinte ocupações correspondem a algum cargo, emprego ou função pública. Mas, se prestar atenção à quantidade de declarantes, verá que representam 8,39% - ou menos de um décimo - do total de declarantes dessas vinte ocupações (a título de curiosidade, dados do IBGE revelam que 14,1% das pessoas ocupadas no Brasil trabalham no setor público).

Se a Receita Federal optasse por um único item, como, por exemplo, “servidor público e assemelhados”, tal ocupação estaria em uma única posição no ranking, mas a realidade não mudaria uma vírgula, embora talvez mudasse a maneira como fosse vista e abordada pelos meios de comunicação. No mesmo sentido, se a categoria dos atletas fosse subdividida conforme o esporte praticado, talvez ocupasse três, quatro ou mais posições na lista, e nem por isso o Brasil se tornaria uma superpotência esportiva, afinal, os atletas continuariam sendo os mesmos.

Ou seja, fosse a lista de ocupações mais genérica, ou mais específica, o ranking seria completamente diferente, e ainda assim se estaria falando do mesmíssimo país, da mesmíssima economia, da mesmíssima sociedade, de modo que qualquer análise econômica ou sociológica a partir desse ranking deve ser feita com muita parcimônia.

O “top 5”, do ranking acima, por exemplo, além de formar um grupo pequeno (cerca de 1% do total de declarantes das 20 ocupações de maior renda média declarada) é fruto de um recorte específico, de ocupações ligadas, de algum modo, ao setor público e, predominantemente, jurídico.

Desde logo se ressalva que a categoria dos diplomatas e afins, além de não ser estritamente jurídica, tem peculiaridades que a tornam insuscetível de comparação com as demais. Quase 60% da renda desses profissionais provém de rendimentos isentos, nos quais se incluem as verbas indenizatórias devidas àqueles que servem no exterior, fixadas em dólares e sujeitas, portanto, a uma variação cambial positiva no Brasil que não se repete, necessariamente, no país em que efetuam despesas com moradia, deslocamento e alimentação, por exemplo.

As demais, por serem ocupações privativas de bacharéis em direito (considerada a insignificância estatística de situações excepcionais) poderiam estar reunidas com os advogados, o que resultaria numa categoria com renda média mensal declarada de R$ 19.733,88 para 441.100 declarantes, ou seja, intermediária, tanto em termos quantitativos como em termos de rendimento declarado, entre médicos (414.432 declarantes e renda média de R$ 26.715,71) e engenheiros, arquitetos e afins (539.915 e R$ 15.575,78).

Como não existe, para médicos e engenheiros, o mesmo recorte que se fez para o ramo do Direito, essa é a única comparação possível entre essas categorias.

Da mesma forma, ao se comparar a renda média declarada da advocacia pública com a dos advogados em geral, é preciso ponderar que o setor público é 100% formal, enquanto o setor privado sofre os efeitos da informalidade. Portanto, sem que se faça ao menos uma estimativa da renda não declarada dos advogados do setor privado, qualquer comparação entre essas ocupações carregará um asterisco.

Outra consequência do tipo de classificação adotado pela Receita é deixar mais evidente a desigualdade entre o topo e a base do funcionalismo público, enquanto a desigualdade do setor privado fica camuflada sob ocupações genéricas e com grande quantidade de declarantes.

Pesquisa feita em 2017 pela consultoria Mercer revelou que o salário médio de um executivo brasileiro é 34 vezes maior do que o de um operário. Essa relação é de 17 para 1 na Argentina, 11 para 1 nos Estados Unidos e 5 para 1 na Alemanha.

Isso indica que essa diferença salarial ou de rendimento entre topo e base das diversas organizações e segmentos econômicos parece ser mais uma questão estrutural da sociedade brasileira do que um aspecto exclusivo desse ou daquele setor, de modo que apontar o dedo só para um lado cheira a hipocrisia.

Fugindo das falácias e ideias pré-concebidas, o relatório tem dados mais interessantes a oferecer. Se analisarmos a natureza dos rendimentos das ocupações listadas acima, o quadro é o seguinte:

Ocupação Principal

RTrL

Trib. excl.

Isentos

Membro do Ministério Público

60,86%

11,15%

27,99%

Diplomata e afins

29,72%

10,60%

59,68%

Membro do P. Judiciário / Trib. de Contas

63,32%

10,54%

26,14%

Titular de Cartório

85,43%

4,99%

9,58%

Advogado setor público, procurador, etc...

76,55%

8,45%

15,00%

Médico

45,23%

9,18%

45,58%

Servidor do B. Central, CVM e Susep

74,29%

10,99%

14,72%

Fiscais e auditores fiscais

76,33%

9,97%

13,70%

Atleta, desportista e afins

58,45%

8,88%

32,67%

Piloto, comandante, oficial de máquinas

62,24%

12,77%

24,98%

Agente de Bolsa de Valores, câmbio, etc...

28,44%

35,84%

35,72%

Produtor na exploração agropecuária

24,67%

5,55%

69,77%

Ator, diretor de espetáculos

35,97%

14,67%

49,36%

Empresário

19,38%

13,24%

67,38%

Agrônomo e afins

54,35%

13,07%

32,57%

Advogado

30,28%

8,61%

61,11%

Engenheiro, arquiteto e afins

50,39%

13,91%

35,70%

Servidor das carreiras do Poder Judiciário

74,72%

8,28%

17,00%

Servidor das carreiras do P. Legislativo

77,60%

8,56%

13,85%

Jornalista e repórter

38,18%

18,71%

43,11%

Média dos 20+

37,80%

10,65%

51,56%

Média geral de todos os declarantes

58,05%

9,74%

32,21%

 

Observa-se que as ocupações com maior renda média declarada têm, quando analisadas em conjunto, um percentual de rendimentos isentos bem acima da média geral. No detalhe, esse índice varia bastante entre elas, sendo menor para as carreiras públicas de um modo geral e especialmente alto para agropecuaristas, empresários e advogados.

Se olharmos para as vinte ocupações com menor renda média declarada, a situação se inverte, pois apenas 15,09% dos rendimentos declarados são isentos, com apenas uma categoria acima da média (trabalhadores dos serviços de embelezamento e cuidados pessoais, com 33,57% de rendimentos isentos).

Essa situação pode indicar um furo no princípio da progressividade tributária. Como se sabe, o imposto de renda é, por exigência constitucional, progressivo, ou seja, quem ganha mais deve pagar uma alíquota maior do que quem ganha menos.

Obviamente, não caberia falar em progressividade quando o rendimento é isento. A questão é que os principais tipos de rendimentos isentos resultam de operações previamente tributadas sob alíquotas não progressivas, ainda que eventualmente sujeitos a imposto de renda adicional.

São elas as doações e heranças (10,07% do total dos rendimentos isentos declarados), os rendimentos de micro e pequenos empresários optantes do Simples Nacional (11,78%) e lucros e dividendos (35,06%).

Não é pouca coisa, pois, em sua totalidade, os rendimentos isentos declarados pelos contribuintes se aproximam da casa de um trilhão e cem bilhões de reais, ou quase um terço do total declarado, consideradas as três naturezas de rendimento.

Esse drible na progressividade tributária fica mais evidente quando se analisa a distribuição desses rendimentos entre os contribuintes, por faixas de salários mínimos mensais:

Rendimento Isento e Não-Tributável

Até 20 SM

De 20 a 40 SM

Acima de 40 SM

Lucros e dividendos recebidos

16,49%

12,50%

71,01%

Rendimentos de sócio de ME ou optante pelo Simples, exceto pró-labore

53,39%

21,06%

25,56%

Transferências patrimoniais / doações e heranças

17,46%

10,15%

72,38%

Parcela isenta de aposentadoria de maior de 65 anos

96,62%

1,91%

1,47%

Parc. isenta correspondente à atividade rural

37,86%

14,17%

47,97%

Pensão, aposentadoria ou reforma por doença grave ou por acidente

57,78%

31,46%

10,76%

Indenizações por rescisão de contrato de trabalho, PDV e FGTS

67,60%

15,67%

16,73%

Rendimentos de poupanças, letras hipotecárias, LCI, LCA, CRI, CRA

49,24%

9,98%

40,79%

Incorporação de reservas ao capital/Bonificações em ações

0,88%

0,91%

98,21%

Transferências patrimoniais / meação e divórcio

8,83%

10,20%

80,97%

Capital das apólices de seguro e pecúlio de previdência privada

28,63%

14,48%

56,89%

Rendimento bruto, transporte de carga (max. 90%)

64,51%

25,17%

10,32%

Lucro na alienação de outros bens imóveis

18,27%

19,51%

62,21%

Bolsas de estudo e de pesquisa caracterizadas como doação, exceto médico-residente ou Pronatec, exclusivamente para proceder a estudos ou pesquisas e desde que os resultados dessas atividades não representem vantagem para o doador, nem importem contraprestação de serviços

94,72%

3,60%

1,69%

Restituição do imposto sobre a renda de anos-calendário anteriores

79,20%

8,83%

11,98%

Ganhos líquidos de ações até R$ 20.000,00

84,62%

8,44%

6,94%

Lucro na alienação do único imóvel

51,10%

40,12%

8,78%

Lucro na alienação de bens de pequeno valor

69,61%

10,12%

20,27%

Bolsas de estudo e de pesquisa caracterizadas como doação, quando recebidas exclusivamente para proceder a estudos ou pesquisas, recebidas por médico-residente e por servidor da rede pública de educação profissional, científica e tecnológica que participe das atividades do Pronatec

95,55%

3,07%

1,38%

75% dos rendimentos em moeda estrangeira de servidores do Governo

3,92%

34,39%

61,68%

Recuperação de prejuízos em Renda Variável

24,07%

11,08%

64,85%

Rendimento bruto, transporte de passageiros (max. 40%)

94,41%

3,02%

2,57%

Ganhos líquidos com ouro até R$ 20.000,00

76,56%

14,32%

9,12%

Imposto de anos anteriores compensado judicialmente

60,95%

16,20%

22,85%

Lucro na alienação de moeda estrangeira em espécie

55,79%

17,58%

26,63%

Outros

56,99%

9,34%

33,67%

Não informado

26,05%

31,58%

42,36%

Total Rendimentos Isentos e Não Tributáveis:

38,89%

13,29%

47,82%

Quase metade da parcela isenta da atividade rural foi auferida por contribuintes com renda mensal superior a 40 salários mínimos. Essa parcela isenta é composta por 80% da receita da atividade rural dos agricultores pessoa física que optam pela tributação pelo lucro presumido, e somou no ano de 2020 o valor de R$ 71.314.684.575,69.

Se houvesse um teto de receita para essa opção, parte desse valor seria despesa dos agricultores, e a parte que sobrasse seria tributada.

No caso de doações e heranças, mais de 70% foram recebidos por contribuintes de renda mais elevada, por alíquotas não progressivas e bastante inferiores ao que se verifica em países desenvolvidos.

No caso dos lucros e dividendos, igualmente concentrados nas faixas mais altas de renda, e nos rendimentos de microempresários em geral, esses mais concentrados nas faixas de renda mais baixa, o quadro é gritante.

Quando se diferenciam as declarações dos recebedores de lucros/dividendos/rendimentos de ME daquelas em que não aparece esse tipo de rendimento (tabelas 10 e 11 do relatório), observa-se que a renda média mensal declarada, pelo método aqui adotado, para quem recebe essa espécie de rendimento, é de R$ 21.630,40. Quem não recebe tem uma renda média de R$ 6.380,20.

Anote-se que o objetivo aqui não é analisar a quantidade de rendimento em si, mas a quantidade de rendimento que escapa à progressividade tributária.

E tais dados são bastante consistentes com aquilo que diversos estudiosos do assunto, com muito mais propriedade e delicadeza, estão cansados de dizer: é privilégio que chama, né? 


ERRATA: em alguns Estados, como DF, SC e BA, o ITCMD já é progressivo, podendo atingir a alíquota máxima de 8%.

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