Câmeras, para que te quero?
Um dos temas que promete controvérsias entre os candidatos ao governo do Estado de São Paulo neste ano é o das câmeras nas fardas da Polícia Militar. Muitos já não se lembram, mas uma câmera oculta já provocou importantes discussões sobre a atuação da PM no Estado.
Há exatos 25 anos, a juíza da 3ª
Vara Criminal do Foro de Diadema, Maria da Conceição Pinto Vendeiro, divulgava
a sentença de pronúncia dos policiais militares envolvidos na morte de Mário
José Josino, vítima fatal de uma rotina de espancamentos e tortura praticada
por um grupo de PMs na cidade do Grande ABC.
Essa história é narrada pelo
promotor José Carlos Blat e o jornalista Sérgio Saraiva no livro “O Caso da
Favela Naval – Polícia contra o Povo” (Contexto, 2000).
Promotor do caso, Blat acredita que o destino do inquérito seria um silencioso arquivamento se não
houvessem explodido na imprensa imagens da truculência policial em bloqueios na
rua que cortava a Favela Naval, inclusive do episódio que vitimou Josino. A
repercussão deu novo impulso às investigações e, ao final, houve punição aos
responsáveis e mudanças que perpassaram toda a corporação.
Mudanças que poderiam ter sido
bem mais profundas.
A Polícia Militar do Estado de
São Paulo nasce, da forma como a conhecemos, no ano de 1970, mediante a
unificação da Força Pública com a Guarda Civil do Estado, a fim de cumprir o
Decreto-Lei nº 1.072/1969, do governo Médici, num momento em que a violência
urbana começava a se consolidar como um dos grandes problemas brasileiros, mas
a preocupação maior do governo era a manutenção do regime.
Números compilados pelo jornal “O
Estado de São Paulo” (14/10/2012) revelam que, na capital paulista, o índice de
homicídios começou a subir nos anos 60 e atingiu, em 1968, o nível de “epidemia de homicídio”, ou seja, superior a 10 homicídios por 100 mil
habitantes. Era esse o patamar de homicídios em São Paulo – Capital no ano em
que a PM paulista foi criada. O índice praticamente dobrou até 1980, e em 1985 já
era de 38,9 homicídios por 100 mil habitantes, tendo batido 40 no ano anterior.
Esse período não viu apenas um
aumento na violência urbana, mas também o uso da morte como ferramenta
repressiva, pela polícia e por justiceiros privados, com alguma aprovação da
população. Mas o efeito preventivo dessa postura, imaginado por alguns, não se
verificou: na prática, a criminalidade só aumentava e, com o fim da censura, começaram
a surgir críticas mais veementes ao comportamento truculento da Polícia Militar
e à letalidade de suas ações.
Fosse no grito intuitivo dos
Titãs (“Polícia”, 1986) ou na reportagem competente de Caco Barcellos (“Rota 66
– a História da Polícia que Mata”, 1992) foi se moldando uma nova visão da agressividade
policial, mais associada com o aumento da violência do que com sua diminuição,
e passou a haver uma disputa política entre “a turma dos direitos humanos” e os
defensores de que “bandido bom é bandido morto”, o que ficou evidente em 1992, após o famigerado
massacre do Carandiru.
Em termos legais, a primeira
reação da sociedade se materializou na Lei nº 9.299/1996, que tirou da Justiça
Militar o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil. O
projeto original, do então deputado Hélio Bicudo, apoiado por parlamentares de
PT, PSB, PPS, PFL, PV e PSDB, era ainda mais ambicioso, e visava equiparar o
policial militar ao civil para fins penais, mesmo quando se tratasse de crime
cometido no exercício do policiamento. A justificativa era de que o julgamento
na Justiça Militar, ocorrido entre pares, geralmente resultava em impunidade. Graças
a essa lei, o soldado que matou Josino com um tiro pelas costas foi levado a
júri popular.
Pouco após a divulgação das
imagens capturadas na Favela Naval, o governador de São Paulo, Mario Covas, mandou
para Brasília uma proposta de emenda constitucional que pretendia extinguir a Justiça
Militar e unificar as polícias (civil e militar). Semelhante proposta foi
apresentada em janeiro de 2000, desta vez pelo Fórum Nacional de Ouvidores de
Polícia. Nenhuma das duas foi adiante.
Por outro lado, o projeto de lei
que instituía o crime de tortura, há seis meses parado no Senado, foi rapidamente
aprovado e sancionado. A lei demorou a engrenar, conforme pude constatar em
entrevista ao promotor Blat no ano 2000, mas hoje embasa milhares de processos
no Brasil.
Reportagem da Rádio CBN, feita
por ocasião dos vinte anos do episódio, elenca algumas outras medidas tomadas na
época, e outras que se seguiram, havendo um certo consenso de que foram
positivas para a Polícia e para a população.
Tais fatos se deram num momento
em que a violência já não era um problema restrito à capital e região
metropolitana, com a taxa de homicídios por 100 mil habitantes atingindo 36,08
no Estado de São Paulo em 1997 (em 1980 era de 13,76). O ápice desta
estatística seria atingido em 1999, com impressionantes 44,01 mortos por 100
mil habitantes.
O índice passou a decrescer
consistentemente a partir do ano 2000, chegando, em 2007 à taxa de 15,45 homicídios para cada 100 mil habitantes. Depois de relativa estabilidade,
voltou a entrar em rota descendente a partir de 2015 e saiu da zona de
“epidemia”, tendo encerrado o ano de 2020 no patamar de 7,33 homicídios para
cada 100 mil habitantes.
Naturalmente, a violência é um
fenômeno complexo, e muitos fatores podem explicar essa queda, nenhum deles
sozinho. Além disso, nem sempre a violência e a criminalidade se correlacionam
da mesma maneira, podendo atuar, inclusive, em sentidos inversos a depender das
circunstâncias.
De todo modo, parece haver poucas
dúvidas de que o Estado de São Paulo é hoje mais seguro e sua polícia é mais bem preparada do que naquela época, em que havia uma quantidade razoavelmente maior de policiais militares, proporcionalmente à população.
Os bloqueios na Favela Naval eram
organizados pelo próprio “Rambo”, sem qualquer tipo de ação coordenada de
inteligência, tendo ficado comprovado que a motivação das operações (coibir o
tráfico de drogas) era fajuta, ante à pífia apreensão de entorpecentes e nenhum
efeito geral sobre o tráfico na cidade de Diadema.
Portanto, a câmera do
cinegrafista “Pica-pau” revelou não apenas a truculência, mas também a
ineficiência de uma parte da maior polícia do Brasil.
Por sua vez, o primeiro ano do
sistema de câmeras nas fardas apresentou números promissores, destacando-se que
o número de policiais mortos em serviço no ano de 2021 (quatro) é o menor em 31
anos.
Parte da população talvez não veja
dessa forma, pois a percepção da violência e da criminalidade tem muito a ver
com aquilo que está mais próximo no tempo e também no espaço – um assalto na
vizinhança assusta muito mais do que uma chacina do outro lado da cidade. Um
sequestro ocorrido no mês passado assusta muito mais do que quarenta sequestros
ocorridos há vinte anos atrás.
Mas o gestor público não pode se
mover por achismos, e qualquer candidato que prometa o fim das câmeras por mero
populismo, ignorando dados e evidências científicas, precisa assumir de antemão
a responsabilidade pelas consequências, em especial se o número de policiais
mortos em serviço voltar a subir.
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