Frases de Rui (2): tributa, ou sê tributado
A feição característica de todo povo livre é o direito de tributar a si mesmo.
Rui Barbosa era um bacharel recém-formado
quando subiu à tribuna do Teatro São João, em Salvador, aos 02 de agosto de
1871, para discursar em favor das eleições diretas para o parlamento
brasileiro.
Pelo sistema eleitoral da
época – cuja reforma andava em discussão – a esmagadora maioria dos eleitores (que
por sua vez não chegavam a 10% da população) sequer poderia votar diretamente
nos candidatos a deputado ou senador, podendo apenas participar das assembleias
paroquiais em que se elegiam os eleitores de província, estes sim responsáveis
pela eleição do parlamento nas assembleias provinciais – objeto da crítica de
Rui.
Tal circunstância, associada ao
sistema censitário escalonado, permitia apenas à elite econômica ocupar os
cargos eletivos, e sem muita margem para grupos divergentes.
O exemplo escolhido pelo
orador para ilustrar esse déficit representativo não poderia ser mais eloquente:
“A feição característica de todo povo livre é o direito de tributar a si
mesmo, e nós andamos todo dia a pagar impostos que não votamos ... ”.
A parte triste dessa história
é que mesmo após a conquista da democracia, mais de século depois daquele
discurso, o povo pouco se ocupa da questão tributária, limitando-se a queixumes
genéricos sobre a existência dos tributos, sem atentar-se ao fato de que as
escolhas que o Estado faz para se financiar induzem ou inibem incentivos
econômicos que podem ser perversos ou benéficos para a coletividade.
Em outras palavras, há
demasiado foco em quanto se tributa, e questão igualmente importante – como se tributa - acaba sendo discutida
e decidida entre poucos e a portas fechadas.
Já ministro da fazenda e
senador constituinte, Rui Barbosa teve a oportunidade de aprofundar-se nesse
assunto, tentando, em nome da União, conter o ímpeto arrecadatório dos Estados,
ao mesmo tempo em que os parlamentares – ainda representantes de uma minoria
endinheirada – buscavam contornar a tarefa de tributarem a si próprios.
Dois terços da arrecadação da
União naquela época provinham do comércio exterior (impostos sobre importação,
exportação e despachos marítimos). O terço restante vinha de impostos sobre alguns
tipos de vencimentos e atividades econômicas, além de receitas extraordinárias.
Tudo isso somado não era suficiente para honrar as despesas:
“O desequilíbrio entre a receita e a despesa é a enfermidade crônica da
nossa existência nacional”, consignou em seu relatório de janeiro de 1891,
pouco antes de deixar o Ministério.
Apesar da malsinada política
de emissões que resultou na crise do “encilhamento”, Barbosa tinha uma visão
austera e moderna do orçamento público. Fez a sua parte no que dizia respeito
às despesas, com o fechamento de repartições tidas por inúteis e cortando o que
chamou de “falsos subsídios à lavoura”, além de criar o Tribunal de Contas. Mas,
para equilibrar a balança do lado da receita, dependia de seus colegas
parlamentares.
Em discurso no Congresso, aos 16
de novembro de 1890, foi buscar nos Estados Unidos da América (EUA) o exemplo para
demonstrar que certos investimentos especialmente relevantes devem ser feitos
pela União, que precisaria, por isso, ter asseguradas suas fontes de receita.
Exortou os representantes dos
estados a considerar formas ainda inexploradas de tributação e, mais uma vez
buscando o exemplo americano, observou que apenas o imposto geral sobre a
propriedade (que incluía a renda) levava anualmente ao Tesouro dos Estados na
União Americana quantia igual à importância de quatro anos da receita nacional
brasileira:
“Já se experimentou, porventura, entre nós, esse imposto fecundíssimo?
Nem sequer ensaiamos ainda o imposto sobre a renda, tributo justíssimo,
reparador, indispensável, urgente”.
A História viria lhe dar
razão.
A Carta de 1891 não apenas foi
omissa quanto ao imposto de renda - que ainda demoraria mais de 30 anos para
ser implantado - como, contra a vontade do então ministro da Fazenda,
transferiu o imposto de exportação para os Estados, tirando receita da União e
aumentando a desigualdade regional ao criar uma vantagem desproporcional aos estados exportadores, em especial o de São Paulo.
Brasil e EUA tiveram despesas
extraordinárias e consequente endividamento público no século XIX, aqui com a
Guerra do Paraguai e lá com a Guerra Civil. Mas, enquanto os americanos
preferiram se autofinanciar com impostos, o Brasil pouco aumentou a arrecadação,
empurrando a conta – que crescia ano a ano - para as gerações seguintes.
Além disso, olhando em
retrospectiva, desde aquela época o Brasil já experimentava um dos maiores
obstáculos ao seu desenvolvimento, que é a predominância dos impostos
indiretos.
Trata-se de um mal que foi
deslocado, ao longo dos anos, do comércio exterior para o consumo, mas sempre
associado a uma subtributação da renda, como mostra esse gráfico, divulgado em
agosto último pela Receita Federal:
Hoje há estudos que demonstram a influência negativa dos impostos indiretos na atividade econômica – efeito que não se verifica quanto aos impostos diretos. Pelo contrário, a tributação sobre a renda e a riqueza, bem calibrada e progressiva, pode estimular o reinvestimento e a destinação de recursos à caridade, ensino e pesquisa, aliviando indiretamente as necessidades do Estado e, portanto, sua demanda por receita.
Assim, é preciso reconhecer que, embora a gestão de Rui Barbosa naqueles primeiros anos da República tenha sido conturbada e cheia de percalços, o baiano mostrou-se à frente de seu tempo, advogando pelo equilíbrio e justiça fiscal contra os minúsculos interesses de seus pares. Infelizmente, essa causa ele, ou melhor, nós, perdemos.
Comentários
Postar um comentário