Frases de Rui (3): todo mundo e o dever da verdade
O remédio da mentira está na verdade.
“A Imprensa e o Dever da
Verdade” é o último dos grandes textos de Rui Barbosa. O historiador do Direito Christian Lynch considera essa conferência - escrita em 1920 e não
pronunciada por motivos de saúde - o testamento de Rui Barbosa como jornalista,
profissão que exerceu conjuntamente à advocacia, à política e à diplomacia.
Nela, entre outras coisas, Rui
Barbosa faz a defesa da imprensa séria, pois parece que desde aquela época os
governos e a imprensa que hoje chamamos de “chapa-branca” tentavam culpar
jornais pela má imagem do Brasil no exterior, como se houvesse alguma obrigação
patriótica de abafar escândalos e como se os fatos não falassem por si:
“Havemos de renunciar ao próprio olfato, desenvolvendo em nós uma
anosmia voluntária, para não sentir os miasmas do podredoiro, cujas exalações,
atravessando o oceano, já nos tem denunciado, na Europa, aos auditórios de
industriais, negociantes e capitalistas, como o mais corrompido governo e o
povo mais corrupto da terra.
...
Quem
subministra, pois, elementos de descrédito do país, não são os cauterizadores
do mal, senão os seus autores; não são os que expõem o mal à luz e ao ar, para
lhes dar cura, mas os que querem ter em abafos, para lhe dar vida...”.
Faz também a sua própria
defesa. Acusado de ser prolixo, enuncia:
“... o escritor curto em ideias e fatos será, naturalmente, um autor de
histórias curtas ... mas onde não minguar o conteúdo, não pode ser minguado o
continente”.
A frase é falaciosa, pois é
possível falar muito sem dizer nada e a concisão é uma qualidade dos bons
textos jornalísticos. Mas, por outro lado, há de se reconhecer que mentir e
fácil e cômodo, ao passo que enunciar a verdade pode exigir longa e penosa demonstração,
inclusive porque uma das formas de mentir é omitir certas partes da verdade.
“Em quatro palavras se poderá encartar uma calúnia. Mas pode ser que a
demonstração de falsidade não caiba toda num discurso. Uma só proposição dará,
talvez, para se verter no espírito humano um erro tremendo. Mas uma vez lançado
ao mundo, sabe Deus que de contestações, raciocínios e debates se não
cansariam, porventura, ainda assim, debalde, em lhe dar combate”.
Barbosa usa o próprio exemplo
para desenvolver o assunto. Suas críticas ao militarismo, ou seja, à
intromissão das forças armadas na política e no governo, foram usadas para
tratá-lo como um inimigo dos militares, algo que não era verdade (semelhante
estratégia se repetiria na História, com outros personagens):
“Está
mesmo nos interesses da mentira a brevidade em investir e saltear; pois, quanto
mais encolhida, menos dará por onde a colham. Mas, justamente porque nada
miudeia, nada restringe, e não distingue nada, por isso mesmo obriga ela o
caluniado a varrer todo o espaço da sua vida, abrangível no vago e amplo da
refalsada assacadilha”.
Deslinda a malandragem dos
governos ao financiar o que hoje chamaríamos de verdadeiros veículos de
propaganda travestidos em jornais. Avança nesse raciocínio com veementes
argumentos sobre a importância da imprensa – ou, em última análise, da
publicidade dos atos e fatos que envolvem a administração e as pessoas
públicas, e assim demonstra o grau de reprovabilidade daquilo que constitui a
crítica central da conferência, as subvenções públicas aos jornais leais ao governo,
ora explícitas, ora escamoteadas, e associa a mentira ao recebimento desses
valores:
“Mas o fino da esperteza consistiria, principalmente, em que,
contestando a imprensa com a imprensa, fronteando com a imprensa veraz a
imprensa professa na mentira, açulando contra a imprensa incorrupta uma
imprensa de todas as corrupções, lograria este sistema desatinar a opinião
pública, deixá-la muitas vezes indecisa entre o rasto da verdade e o da
mentira, ou, muitas outras, induzi-la a tomar a pista falsa pela pista
verdadeira.
...
Mas
por que ir assim de encontro à evidência das coisas? ... Os administradores que
ladripam ou ladroam do Tesouro Público, para assalariar escritores, ou os escritores
que embolsam tão vil salário, para embutir à opinião pública o contrário do que
sentem ... furtam uns e outros ao público, para o trair”.
Propugna que a verdade deve
ser almejada e exibe o custo pessoal que o dever da verdade lhe impunha:
“O remédio da mentira está na verdade. A República, entre nós, se
consagrou ao culto da mentira. Só nos salvaremos, opondo a essa idolatria a
religião da verdade.
...
Para
não mentir ao Império, levantei-me contra a política, em que ele teve a sua
sepultura. Para não mentir à República, organizei-lhe o regímen nessa
Constituição, onde ela teria as garantias de sua realidade, se a quisessem
observar. Para não mentir à Constituição, lutei, desde os Florianos até os
Hermes, contra os que a ignoraram, a corromperam, a estragaram, a destruíram.
Para não mentir ao país, tenho adotado por norma de minha linguagem essa
independência e intransigência, que me converteram no alvo dos ódios da máquina
republicana. Para não mentir aos meus próprios votos de não mentir, magoo,
desgosto, e, muitas vezes, me inimizo com as próprias causas, por cujos mais
elevados interesses me abnego, e sacrifico”.
Deixa assim, nesse seu testamento, além da eloquente mensagem sobre a importância e responsabilidade da imprensa, um legado de renúncia e aceitação: renunciar à ignorância complacente e aceitar que
a mais inconveniente das verdades ainda é melhor do que uma reconfortante
mentira.
E passados mais de cem anos da
primeira leitura desse clássico da imprensa liberal (outra vez cito Lynch), qualquer
pessoa com acesso à internet pode lançar ao mundo meia dúzia de palavras, sons
e imagens com alcance até maior do que os jornais impressos daquela época.
Um enorme avanço, que deve ser
reconhecido como um direito e ao qual corresponde um importante dever, o dever
da verdade.
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