Frases de Rui (4): concorrência desleal
Em quatro palavras se poderá encartar uma calúnia. Mas pode ser que a demonstração da falsidade não caiba toda num discurso.
O texto de Rui Barbosa que contém essa frase já foi
abordado aqui, com suas queixas sobre as dificuldades que a verdade e a
seriedade impõem, enquanto ao mentiroso basta mentir, rementir e colher as
facilidades da mentira, tais como as subvenções custeadas pelo contribuinte em
favor dos jornais governistas, por ele denunciadas.
Uma verdadeira concorrência
desleal.
Contemporâneo de Barbosa,
Oliver Holmes Jr., juiz da Suprema Corte americana, ajudou a dar contornos
jurídicos à analogia de Stuart Mill sobre um livre mercado de ideias, no qual
a verdade seria a sobrevivente, por assim dizer, do embate das ideias na arena
da opinião pública.
Isso não quer dizer que
defendesse uma liberdade de expressão absoluta, e algumas de suas falas e
decisões são usadas até hoje para mostrar os limites dessa garantia fundamental.
Mas a racionalidade por trás dessa ideia é de que, quanto maior a liberdade,
mais ampla a concorrência e melhor o produto – a verdade – que prevalece no
final, o que implica dizer que qualquer intromissão do Estado nesse ambiente é
não apenas indesejável, mas desnecessária.
A questão é que o Estado não é
o único que pode, potencialmente, interferir nesse mecanismo, como demonstrou
Rui Barbosa ao observar o risco que a imprensa pode representar a si própria:
“Nada
mais útil às nações do que a imprensa na lisura da sua missão. Nada mais
nefasto do que ela mesma na transposição do seu papel ... porque bem poucos são
os que dos seus guardas se guardam. Quis custodiet
custodes? Sendo eles os a quem se confia a chave ou vigilância do caixa, em
se lhes inclinando o ânimo à prevaricação, o remédio já chegará tarde, quando a
malversação já houver levado os malversadores ao senhorio, e reduzido à
sujeição os enganados”.
Barbosa não avança no sentido
de defender qualquer ação estatal para reprimir essa conduta. Pelo contrário,
clama por um não-fazer: não subvencionar economicamente os jornais, isso numa
época em que a maioria da população brasileira nem sabia ler e ainda estava
para acontecer a primeira transmissão de rádio no país.
As reflexões do pós-guerra e a
revolução na comunicação de massa ocorrida no século XX mostraram que a teoria
de Mills, para ter alguma utilidade, precisa ser temperada com uma dose
cavalar de realidade.
Assim como os países mais
avançados perceberam, em dado momento, que era necessário reprimir ações
privadas que levavam à destruição do livre mercado de bens e serviços, é
preciso notar que a imprensa séria e comprometida com a verdade sofre com a
concorrência desleal por parte de veículos que colhem as facilidades da mentira
na forma de benefícios econômicos.
Em tempos de internet e redes
sociais, multiplique-se por dez o tamanho do enrosco.
Não apenas há, na imprensa
profissional, a concorrência entre os veículos mais e menos leais ao dever da
verdade, como há ainda a concorrência entre a imprensa e a não-imprensa,
materializada em sites, canais e perfis de redes sociais que não precisam
gastar com mão de obra qualificada, com a apuração de fatos, com pesquisa e,
quando anônimos, sequer respondem pela falsidade de suas afirmações.
Tudo que precisam fazer é
dizer aos seus seguidores aquilo que atende aos respectivos anseios, e serão
fartamente remunerados, sem as chatices das longas explicações, de ouvir o
outro lado ou seção “erramos”. Trata-se de uma concorrência para lá desleal e
um mercado assim pode ser qualquer coisa, menos livre.
Mesmo assim, quando chamados à
responsabilidade, há, inclusive na imprensa, quem os defenda em nome de uma
falsa liberdade, ignorando que a mentira não se coloca ao lado da verdade,
porque iguais não são; são opostas, mas não têm o mesmo valor, aquilo que não
informa, informação (jornalística) não é.
Retomando as queixas de Barbosa, disseminar a mentira, seja
por má fé, desídia ou incompetência, não é apenas mais fácil, como, numa
operação comercial, muito mais barato.
E as facilidades hoje vão muito além de verbas do governo,
autopromoção ou interesses neste ou naquele negócio. Há os desejos de donos,
anunciantes e consumidores, dispostos a pagar ou dar audiência a quem lhes diga
o que querem ouvir, quem lhes alimente a confiança na própria razão ou quem
lhes garanta entretenimento com fatos supostamente reais.
Mas a verdade, afinal, onde está? Como disse Rui Barbosa, a
verdade está na “evidência das coisas”, ou seja, na fidelidade aos fatos, ao
que se pode acrescentar a fidelidade à linguagem, que é chamar as coisas
pelos nomes que elas têm.
Quem foge a esses mandamentos, está para o jornalista como
o agiota está para o banqueiro, como o charlatão está para o médico e como o
contrabandista está para o comerciante.
Não podem disputar o mesmo mercado.
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