Frases de Rui (6): quando o assassino veste farda

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto....

 

O homicídio é um crime sempre chocante, repugnante, dos mais graves que existem.

Se um agente do Estado, vestindo a farda, esse símbolo de autoridade, honra e dever, tira a vida de um inocente, ou de quem está rendido e desarmado, o crime torna-se duplamente chocante, soberbamente repugnante, ainda mais grave.

Quando esse agente, tendo cometido tal crime, encontra passividade e até proteção em seus superiores, o criminoso é o próprio Estado, a sensação é de revolta, e o espírito se arma contra a injustiça.

Foi imbuído desse espírito que Rui Barbosa subiu à tribuna do Senado em 15 de dezembro de 1914, para apresentar um requerimento e ler a carta recebida de um oficial da marinha sobre um caso de grande repercussão, ocorrido quatro anos antes.

Tratava-se das execuções de prisioneiros ocorridas a bordo do navio “Satélite”, na sequência da Revolta da Chibata.

A embarcação havia deixado o Rio de Janeiro com destino ao Acre, levando marinheiros revoltosos que, apesar de anistiados, foram expulsos da marinha e mandados para o Norte do país:

 No convés desse navio, o destacamento do Exército a quem se confiara a guarda e a segurança das praças fuzilou barbaramente a oito ou dez cidadãos brasileiros, sendo que, segundo as informações correntes e publicadas a esse tempo nos nossos jornais, algumas houve que, apavoradas, tomadas de pânico ante a horrenda sorte que as esperava, se lançaram às ondas”.

O caso não era, para Rui Barbosa, uma novidade, até porque advogou em nome das vítimas e tratou do assunto no Senado em outras oportunidades:

Quando ao mundo chegou o conhecimento desse fato, por toda parte se disse que o Brasil era um país selvagem. As sociedades humanitárias, filosóficas e políticas do continente europeu se levantaram para estranhar o pavoroso crime, e foi então que envergonhado como brasileiro e indignado como homem de que no meu País, em plena República e debaixo de leis, que tinham abolido a pena de morte, tais irresponsabilidades se pudessem manter, vim à tribuna repetidas vezes, empenhando-me com o Congresso e com o Governo para que os autores do crime, fossem eles quem fossem, passassem pela expiação legal das suas responsabilidades”.  

Mas não houve sequer um processo para apurar o ocorrido, e Barbosa relatou uma série de episódios que indicavam a omissão do governo de Hermes da Fonseca (15 de novembro de 1910 a 15 de novembro de 1914) em punir os responsáveis, e por isso a ação do Senado seria necessária, inclusive porque os crimes ainda não estavam prescritos.

Ao longo do discurso, reiteradamente discorreu sobre a gravidade dos crimes em si e da omissão do governo anterior:

... a civilização de toda e qualquer sociedade se mede, primitivamente, elementarmente, pelo respeito que cada Governo dispensa à guarda e à vida humana ... quando porém os atentados contra esses princípios revestem a fórmula incomparavelmente grave de serem cometidos pelos agentes da autoridade pública, de serem cometidos pelos fortes contra os fracos, de serem cometidos pela força armada contra cidadãos inermes, esses delitos assumem a gravidade que merece da parte do legislador a mais alta consideração, a mais alta severidade”.

O tal requerimento ainda seria discutido no Senado por mais algumas sessões, mas chama atenção um trecho do discurso de Rui Barbosa, defendendo o seu requerimento, em sessão de 17 de dezembro de 1914:

A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra (...).

A sua grande vergonha diante do estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais.

A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem: cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vem nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade...

(...)

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto ...”

Nesse tom duro e eloquente, seguiu o senador Barbosa com pesadas críticas à República brasileira instaurada em 1889, e ao que chamou de “ruína da Justiça”:

E nesse esboroamento da justiça, a mais grave de todas as ruínas é a falta de penalidade aos criminosos confessos, é a falta de punição quando se aponta um crime que envolva um nome poderoso, apontado, indicado, que todos conhecem, mas que ninguém tem coragem de aponta-lo à opinião pública, de modo que a justiça possa exercer a sua ação saneadora e benfazeja.

... nessa eliminação da justiça pelos mais elementares de todos os princípios republicanos, o caso do Satélite avulta como o mais grave de todos os casos, como aquele em que a nossa honra maior enxovalho recebeu...

Hoje sabemos que ninguém foi punido por esse caso, como sabemos que de lá para cá muitos outros cidadãos brasileiros perderam a vida em circunstâncias injustificáveis, por atos de agentes das forças armadas ou de segurança.

Sabemos também dos avanços, e que a impunidade não é mais uma regra absoluta.

E que ainda há muito por fazer.

Afinal, de tanto ver a pena de morte sumária nas ruas, de tanto ver o julgamento baseado na aparência e no preconceito, de tanto ver a celebração da violência, o homem chega a desanimar da paz, a rir-se da autoridade, a ter medo se ser honesto.

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